segunda-feira, 28 de março de 2011

a mulher violentada

Irréversible (2002)
Ela caiu na poça de água da chuva no chão do beco quase escuro. Um poste ainda iluminava as latas de lixo que de tão cheias esparramavam os restos. Seu nariz sangrava e ela bebia o próprio sangue, e as próprias lágrimas. Ela estava suja da lama formada pela chuva. Estava suja das mãos do homem insano que lhe bateu para que ela parasse de chorar e suplicar enquanto ele rasgava sua roupa com a violência de um cão. Suja daquelas mãos fedidas a cigarro barato que passeou entre seus cabelos loiros e deslizou pela sua face numa tentativa de carinho. Todo o corpo doído, marcado – vermelho – arranhado. Sujo do prazer final do homem.
    Ela nunca havia entregado seu corpo nem seu coração a ninguém. E agora nada parecia ser mais seu. E agora, via apenas o lixo de um beco quase escuro e o chão molhado da chuva. Apesar da vontade de gritar toda aquela dor que sentia, não conseguia. Não tinha força nem para se levantar do chão imundo.
    Sua alma estava mais ferida. Ela que acreditou naquele homem, que o amou. Ele que disse a amar só para tê-la em suas mãos, ao seu alcance. Ele aproveitou da condição de homem amado para roubar da mulher sua carne ainda intocada.
    Ela caída sem forças; pensou no amor. Pensou que nunca esqueceria aquela dor carnal e cortante. Seu coração violentado, seu corpo violado.

domingo, 20 de março de 2011

sobre príncipes

Branca de Neve e os Sete Anões (1937)
Nunca realmente parei para pensar sobre príncipes encantados. Achava até que não acreditava nesses homens montados em seus cavalos salvando seus amados de perigosos dragões e bruxas com verrugas no nariz e risadas assustadoras, todos altos, fortes, valentes e destemidos, que até parecem cópias uns dos outros. A perfeição dos mundos fantasiados.
    Mas eis que sim, eu acredito em príncipes encantados. E espero pelo meu. E ainda acredito que todos esperam por eles. Não tão imaginativos como esses das histórias que se ouve, mas perfeitos nos desejos e fantasias silenciosas de cada um.
    Desde que se é pequeno se tem a ideia do príncipe encantado, do homem perfeito para toda a vida, nos mínimos detalhes pensados e fabricados na imaginação. Com o tempo os detalhes vão se perdendo e nem tudo vai sendo “tão importante assim”. Ele não precisa ser mais tão magro como o modelo da revista, nem loiro feito o príncipe inglês, nem tão rico e bonito como o ator da novela. Tornamo-nos menos exigentes, menos seletivos. Com o tempo, às vezes, o príncipe encantado se resume apenas a presença de amor, ao sentimento retribuído e: isso basta.
    Sonhar com o príncipe encantado é de certa forma acreditar naquela felicidade íntima e voraz que parece ser tão ilusória e démodé, mas que está tecida no destino de toda vida.

segunda-feira, 14 de março de 2011

poetas que não sou

    Poetas me encantam, me seduzem e me comem com os dedos. Pela forma como eles cadenciam as palavras num respirar tão doce e forte e ácido, pela forma de se desvencilhar de seus pecados e amores e jogar tudo na nossa cara sem piedade alguma.
    Eu odeio a piedade dos poetas. Odeio piedade nos poetas.
    O poeta não se protege, ostenta os calos e as feridas das mãos e nos fere com seu vômito. Gosto de ser ferido, exaurido, digerido. Gosto dos poetas que me afrontam, das poesias que se instalam em mim. Gosto dos poetas que são poesias, e das poesias que são vidas.
    Não escrevo poesia porque simplesmente não tenho alma de poeta. Sou algo diferente. A minha alma difere.

quinta-feira, 10 de março de 2011

beirando

Ela acordou e o mar beirava seus pés cansados. Ainda era noite, maré cheia, ondas violentas. Seu vestido cor-de-vento molhado. Se a cidade estende-se em luz e as pessoas que na noite se encontram, o mar é escuro de si mesmo.
    Refletido em seus olhos castanhos, aquele mar revolto das horas que ela não podia controlar. Adentrava-se a noite e crescia-se o desconhecido. Da condição de se manter viva não sobrava mais vestígios. Ela inteira despedaçada, e a noite fria. Sargaço enfeitava sua pele.
    O mar acordou e ela beirava suas águas revoltas. Qual noite de engolir vidas incontroláveis: engolia pausadamente aquela vida caída em suas ondas.
    Quem dera o mar a engolisse como ela quer engolir o mar.
    Beira mar.
    Quem dera as águas preenchessem seu corpo de vida.

quarta-feira, 2 de março de 2011

entrelace

O dia chuvoso, quase abafado, e o quarto tomado pela fumaça do Camel; deitado na cama, olhando as estrelas e os planetas e as luas no teto que brilhavam quando era escuro. O pensamento vago, perdido de nem ele mesmo saber onde. O telefone tocou e cortou o silêncio.
   Rodrigo caminhava ao lado do mar quando ligou para Thiago. Sob o sol, sem nuvens, e o mar. Exatos dez anos que se conheciam, que conversaram pela primeira vez. Uma década inteira, e como o tempo passou sem que eles percebessem tanto.   
   Naquela época Thiago estava começando a conhecer o mundo, não sabia de amor, não sabia bem sobre a vida, poucos amigos, não sabia de ¼ do homem que era. Morava com os pais e tinha um sorriso solto, e a inocência febril que pode ser mortal. Ele tinha sonhos, como quase qualquer outro pode ter, sobre ter seu príncipe encantado que o defenderia para toda a vida. Escrevia poemas lindos e coloridos de rimas que mais tarde até o envergonhariam um pouco. Ele exalava algo especial, que partia daquele coração ainda virgem.
   Do outro: Rodrigo vivia numa fase diferente. Era mais velho, morava só, se divertia de si mesmo e dos outros, sabia da dor das mentiras, tinha algumas marcas leves da vida sobre a pele. Gostava de sol, mas o frio lhe era reconfortante.
   Depois da primeira conversa – desde ali que se amaram – depois de outras tantas conversas veio uma noite em que eles se encontraram. E Rodrigo serviu a primeira dose de cachaça que a garganta de Thiago viu, serviu a primeira dose de carinho que a pele e o coração dele puderam sentir. Embriagou-se de amor e de álcool.
   Aquela noite foi apenas aquela.
   Nunca mais se tocaram como ali.
   E o tempo os transformou. Thiago sabia mais sobre a vida, sabia do que as pessoas eram capazes e já trazia certas marcas de guerra tatuadas; ganhou peso, e o sorriso: mais sedutor. Já havia se acostumado ao tom da cachaça, escrevia como poeta e era apaixonante. Ainda esperava pelo príncipe que lhe salvaria das lesmas nas noites de chuvas. Rodrigo ainda ria de si e dos outros, havia emagrecido, as marcas mais cicatrizadas sobre a pele (que não queria dizer que doíam menos), e a necessidade de ajudar quem pudesse. Acreditava nas estrelas e em borras de café. Tinha se acostumado mais com a dor de se viver.
   Durante os anos eles se conheceram melhor, como ninguém mais os conhecia. Viam-se inteiros, sem os disfarces enxergados pelos olhos alheios. E a cumplicidade que existia os faziam viver na vida um do outro quais atores coadjuvantes. Como quando alguém feriu mais uma vez Rodrigo e na noite voraz suas lágrimas caíram sob o colo de Thiago que foi ajudá-lo com a dor. Como quando Thiago achava um pretendente para o posto de príncipe encantado e Rodrigo fazia de tudo para que ninguém o machucasse.
   E no final da ligação Rodrigo perguntou entre os sorrisos: “- porque nós nunca namoramos?” O silêncio de Thiago por alguns segundos já era a resposta: ele não sabia o porquê.
   Talvez eles tivessem medo, ou simplesmente não era para acontecer – coisas de destino. A certeza era de que se eles tivessem namorado não se conheceriam como são, e sim com o mesmo olhar alheio da maioria das pessoas que passaram pela vida deles.
   E Thiago tinha a certeza de que todo aquele sentimento entre eles era o mais perto que ele havia chegado do amor.
para Roberto Torta,