terça-feira, 20 de dezembro de 2011

cantada

A chuva sobre a cidade não dispersava bem o calor. No quarto, o homem ofegante e a mulher completa sobre a cama olhavam o teto – as telhas já envelhecidas. Ela sustentava um sorriso desenhado e ele, ele de olhos fechados, ele meio excitado, lembrava todo o sexo feito – o corpo dela sobre o seu. Eles suados, melados do prazer carnal e enfim, o suspiro dela.
    Ele se aproximou da mulher e tocou seu peito nu, onde o coração ainda acelerado; deitou a cabeça sobre a mulher amada. Ela o abraçou, como se o protegesse: o homem seu.
    As paredes azuis de mar suavizavam todo o quarto que era enfeitado por flores que nem se conta.
    Ele sussurrou-lhe que a amava e ela sorriu encantadamente e deslizou sua mão pelo rosto dele de barba por fazer, de cabelos cacheados e de olhar amado. Ele apertou-se mais forte ao corpo dela como se quisesse entrar na sua pele. Ele queria entrar na mulher, e percorrer seu corpo inteiro. Ele a queria para si, ser dela, seu interior.
    Entrelaçaram as pernas para que não houvesse a separação dos corpos. O cafuné dela no homem. E o chamego dele no peito dela sobre o lençol listrado.
   Ele levantou-se e a puxou para o banheiro. Ela rindo tempestiva – que nunca mais tivera sorrisos tão felizes assim – ela feliz o acompanhou se entregando a mão que lhe puxava forte.
    Imprensados na parede enquanto a água quente caia sobre o beijo intenso e as mãos dele segurando a cabeça dela como nos filmes de amor água-com-açúcar. Mesmo o calor da água, o calor dos corpos, o calor da noite. Mesmo a mulher estranha, mesmo o homem cativo.
   Ele a enxugou calmamente, como se a pele da mulher fosse frágil. Ela olhava pelo espelho o rosto feliz do homem que observava suas costas nuas. Ela que sentia sobre a toalha as mãos quentes dele. A mulher feliz.
   Ele vestiu as calças, a camisa xadrez, os sapatos vermelhos e a beijou. Ela atacando o vestido de chita: o beijou. Que as horas nem importavam mais.
  Como não importava a manga madura apodrecendo no pé, o leite derramado no fogão. Como não importava a segunda-feira de amanhã, as ruas congestionadas e a canção ruim no rádio. Como não importava que eles não soubessem o nome um do outro, porque foi amor num único olhar, naquela única noite.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

entreaberta

Na noite seca: perfurou-lhe o peito qual faca amolada retalhando-o como de gente que não é completa.
    Ela cheirava a morango de seu perfume barato e andava descalça. Os sapatos nas mãos, resultado de pés cansados de manter-se alta aos olhos e amores dos outros. Um calor imensurável lhe fazia suar.
    A noite anterior lhe deixou marcas: as costas brancas arranhadas, as coxas, o pescoço marcado pela ânsia descontrolada de uma boca. A noite anterior lhe trouxe marcas: seu coração ferido estava certo de amor.
    Certeza indecisa a de quem nem dormiu. Enquanto o café fervia, olhava a janela e as horas eram quase cinco. O sol nascia inquieto incomodando-a – como dor – por ser ela gente da noite. Ela que amava a escuridão quebrada pelas luzes dos postes formando sombras duvidosas e incertas. Chegou em casa depois de cruzar meia cidade a pé, depois de ser consumida dolorosamente, depois dos copos de vodka, depois de sonhar com felicidade.
    Quando saiu de casa em corpo de menina, Helena tinha a pele ainda mais branca. Parecia pura de qualquer sentimento – doloroso ou viciante. Mas seu coração – que não está a olhos nus – seu coração nunca foi puro. Mas sempre foi fortaleza inatingível para quem a queria íntima. Nunca deixou que a conhecessem como nem ela se conhecia.
    Helena de cabelos ruivos e olhos esguios, que mãos eram decididas. Helena que nunca havia amado – nem nunca houve sequer vestígio disso – sabia decididamente que agora estava amando. Ela sabia mais do que sempre queria.
    Em sua mão, o número do telefone de quem a amou violentamente no banheiro do bar esperava em rabisco num papel amarelo. O mundo parecia pulsar.
    Amarelos eram também seus dentes.
    Nos olhos que fitavam as janelas dos prédios se abrindo, abrigava-se uma indecisão de mulher. Helena que as mãos eram trêmulas.
    Quando a sua mão largou o papel do segundo andar, o cheiro de café fervendo quebrou o silêncio da casa. Helena caminhou leve deslizando pelo corredor até o quarto. Quem de certo ama perceberia nos seus pés o peso da vida. A porta do quarto entreaberta e o abajur ainda aceso, e o homem que lhe amava nu entre o lençol branco.
    A cidade acordava como se acorda por espanto.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

pela janela todo o mar

Seja agora fim de tarde, o pôr-do-sol que nascia. Ela ainda esperava na janela. Seus olhos que acompanhavam o mar, as ondas no vem e trás e leva, e a sua cor que muda com a cor do mar. Tanto tempo se passou, de tanto amor que se foi. Às vezes seus olhos se cansavam do horizonte e penetravam qual raio X nas águas.
Ela já era a construção da janela (tijolo, cimento, madeira), de estética, de costume. Sua ausência era a destruição de um dia, um insignificado. Detrás da cortina de renda os seus olhos repousam ou protegem-se. Seja vento norte ou oeste, dançam a cortina e seus poucos cabelos brancos de alguns vinte e poucos anos. Uma dança em frente aos seus olhos, um convite ou acaso. O mesmo vento que parece trazer e levar o mar – pequeno.
Mas ela sabe que o mar é vida-viva própria, que ele é senhor de si. Não há vento que o guie, que o mande ou o desfaça. E que quando se arreta não há terra firme, ou marítimo. Marulho evocador de alma em arrebentação.
Foi assim que aquele homem quebrou-se em ondas. Um mar em arretamento, um homem sem estar. Ele jogou-se as ondas, adentrou o mar. Ele inteiro ao mar, o mar dentro dele, ele dentro do mar, as águas em turbilhão. Sua pele salgada, seus pulmões cheios d’água, seu prazer incontestável. Sobraram só as roupas, molhadas e salgadas, para os olhos de quem assistia.
Os olhos de mulher – os olhos da mulher – viam imóveis as águas devorarem todo o homem. Cuspiram suas roupas e impurezas, as quais ela catou. As roupas foram enterradas como corpo que foi comido. As impurezas foram comidas como restos indissolúveis.
Ela ainda espera na janela alguma coisa só sua, que ninguém ou outrem possa imaginar. Dizem que o mar é sua paixão, qual homem devorado adentrou e foi adentrado. Dizem outros que é a espera da carne resto do que o mar comeu. Ou seus olhos se perderam na marola. Ou ela mesma não quer voltar.

sábado, 10 de dezembro de 2011

quebrante

Era novembro e algo no coração.
No coração de quem se não fosse o dele. No novembro qual se não fosse esse. Por ser primavera, novembro se torna em flor mais singelo.
Quanto amor ainda existe nesses olhos que permeiam a escuridão-meia do quarto. Já são tantas as horas da noite. Sobre seu peito repousa o homem que o ama; a barba e seus pelos, a boca e sua pele. Sobre ele inteiro repousa uns sonhos amarelos.
A orquídea na janela entreaberta roxea todo o quarto iluminado pelo abajur. Mas o cheiro é de livros de poesias, de poetas – de coração. Tudo se respira em espaços minúsculos: seu pulmão é um vácuo que se inebria facilmente. Ou as cores da falsa Frida Kahlo. As paredes rebocadas recentemente, outras roupas espalhadas pelo chão. Seu coração sustenta a batida. Sobre seu coração: a contração.
Se a folha da orquídea cair no chão será de um silêncio tão íntimo que será mais seu do que da própria flor. Se a pétala da orquídea cair, será de uma lágrima.
Ele se quebra em devaneios, contorce a coluna, relaxa o contraído e solta todo o físico. O corpo sobre si é solto agora, por instantes. Se há fuga, ele não percebe. Mas quando retoma seu contorno em volta ao corpo do que fora bem-amado, já não é amor inteiro o que o suor da pele alheia exala.
Resta-lhe seu próprio corpo (sua própria pele úmida), o anti-amor, fechar seus olhos, a cor escura da noite.

- que nasceu em novembro, mas aflorou em seguinte.