quarta-feira, 29 de junho de 2011

desata

Não se reduz uma vida a “respirar”, porque se não se senti o mundo não se é vivo. Não se reduz um amor a “namorar”, pois se não se sente não há nada. Não se reduz o que é intimo ao que é profundo, pois o mundo é cruel demais. Diferente de simplicidade, isso é menosprezo. A redução insignificante de um coração, de uma cor. Esses homens de mundo, imundos, cadê os olhos que prometeram (?).
   Às vezes, quando o mundo parece perdido é porque tudo se perdeu mesmo. O laço desatado voa pelo e com o vento.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

o príncipe e o moinho

O príncipe com seu coração armado continuou seguindo pela estrada perdida. Livrou-se da coroa que lhe pesava e das roupas cheias e coloridas. Quem por ele passava ainda o reconhecia como príncipe pelo seu sorriso tímido e muito que lhe fechava os olhos calmos. Ele sabia que a estrada era perdida, mas era guiado pelo coração e era isso que lhe fazia ser príncipe.
   Até a estrada perdida se perdia na própria poeira, e o príncipe caminhando perdia o seu sorriso a cada grão de areia. A poeira tomou-lhe os olhos, qual amor tomou-lhe um dia; cobriu-lhe os cabelos e as roupas já monocromáticas – deserto. A estrada agora era quase deserta, poucas vivas-almas passavam por ali.
    A poeira ainda mais densa comeu-lhe os olhos.
    E quem passava por lá, avistava o príncipe seguindo pela beira da estrada. Mas ninguém o diria príncipe mais, era agora o louco que seguia um destino sonhado pela estrada perdida. O que lhe fazia príncipe por fora não existia mais e só por dentro lhe sobrou o príncipe que um dia fora. Precisava-se adentrar sua pele de sol para perceber-lhe príncipe ainda. Mas ninguém tinha coragem sequer de olhar em seus olhos, dito esse homem louco, quanto mais tocar-lhe.
    Só ele sabe o príncipe que foi.

domingo, 19 de junho de 2011

quase moinho

O que ela podia fazer se a amava. Deixou-a entrar novamente em sua casa. As mesmas cores na parede, as cortinas ainda empoeiradas, o mesmo vinho de toda sexta. A casa física e a rotina.
   O que ela podia fazer se a queria. Deixou-a entrar novamente em seu corpo. Corpo quase inteiro igual, desde os olhos penetrantes até as mãos doces; só o coração, agora ferido, não era o mesmo. Desejava novamente seu corpo entrelaçado nos pelos dela, sua boca entre as coxas.
    O que ela podia fazer? Virar as costas sem mais, como um dia fizeram a ela? O que ela podia fazer senão aceitá-la. Aceitou-a pelo amor que queria. Mas, não sabia, quando chegava a noite, se os pensamentos de sua amada eram para ela. Como queria saber se nos sonhos dela não viajam terceiras pessoas. O que ela podia fazer senão tentar sufocar essas incertezas.
    O que ela podia fazer se doía estar só.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

qual moinho

Seu coração aflito não o deixava viver. O consome em paz e amor e dor. O coração agitado descompassado, desconstruído, desarmado de sorrisos e vingança. Ele só quer a paz que perdeu naquela noite, cansado.
    Até que aquele desconhecido parado no ponto do ônibus o abraçou e o beijou no rosto, sem nem mesmo saber do cansaço de viver que levava aquele coração bradicárdico. O homem desconhecido lhe acolheu – a necessidade de um braço-reconforto – deu-lhe uma esperança de que tudo vai ficar bem, mesmo que por aquele instante.
    E nesse instante ele acreditou em todo aquele beijo, até que os olhos se abrira: ele queria tanto perder a realidade que os olhos veem. 

quinta-feira, 16 de junho de 2011

segundo moinho

Eles não podiam fingir que não se amavam mais, mas não podiam disfarçar que algo havia acontecido. O lençol manchado de esquecimento. Não foi desamor.
    Quando ele chegou em casa encontrou João em braços que não eram seus. Tantas perguntas cabíveis ali (de porque, de quem, de como) e a única coisa que queria era conseguir apagar aquela imagem da cabeça: o corpo do homem que amava entregue a um estranho qualquer, talvez, nem merecedor de um beijo de piedade.
    Mas esquecer não é fácil, se tal fosse, ele se esqueceria de si mesmo, porque nele há o sentimento que o atormenta quando não é satisfeito. Ele se esqueceria desse sentimento suplicante por respirar. E ao cair na cama ele havia esquecido como dormir.
    Ele quis tanto perder seus olhos.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

um moinho

Ela não merecia carregar essa dor; exaurida no chão, tenta se levantar. Ela tentava ter um coração tão bom, merecia instante melhor: deitar em lençóis secos de lágrimas, ela merecia deitar e adormecer. Adormecer porque ama, adormecer para sempre, porque a vida dela sempre aparece com um jeito de viver, cheio de frestas que a farão cair de novo no chão frio. Ela não merece lutar para se reerguer e ser derrubada covardemente de novo.
    Ela parece que perdeu os olhos.

sábado, 11 de junho de 2011

inquietamente

Toda dor chorada como há tempos não se sentia. Adormece por esses instantes para amenizá-la. Era o desejo por essa vida ainda não vivida, a constante da solidão.
     Inquietamente se morre de amor.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

tua casa vazia

Quem quer sol num dia daqueles onde as coisas pareciam querer reviver. Foi quando ela entrou aberta na casa que um dia já havia sido sua. Pouca coisa havia mudado, só as fotografias que não permaneciam as mesmas para evitar lembranças desnecessárias. Ela entrou acanhada, silenciosa, com um sorriso tímido enquanto ele não sabia para onde olhar.
    Sentaram-se na mesa branca no quintal florido pelas rosas. Ofereceu-lhe café recém passado e olho-a indecifrável. Silêncio de dois. Cada qual penetrava seu olhar nos olhos do outro, perdidos no instante e nas lembranças.
    E nas lembranças, foi quase uma premonição quando ele gritou que ela um dia voltaria implorando pelo seu amor novamente. Os gritos dele enquanto caía no chão sem forças agarrando-se a parede em meio ao silêncio dela. Cena que ninguém imaginaria, nem ele mesmo. Não era de explosões ou arroubos, mas todo aquele momento foi demais para ele. Ela saindo indiferente.
   E lá estava ela: desiludida, desamparada, desarmada, destruída. Coração apertado de amor contido esperando o perdão. Mas ele não era mais o mesmo, as coisas mudam. Tanto sofrimento na casa vazia, escura, triste, na casa construída para dois, no coração decorado para dois. As coisas mudam; “a gente muda”. O amor passa, a dor vai se desmanchando. As coisas mudam.
   Ela segurou a mão dele imóvel sobre a mesa. Ele ainda perdido em lembranças. Ela perdida nas palavras – o que dizer? Não disse nada. Apenas uma lágrima solitária. E sua mão segurou na dele com tanta força, como se sentisse tanta dor, que o fez retornar ao momento. Ele desvencilhou a mão implorante e acariciou-lhe o rosto – sem amor.
    Naquela noite ela dormiu na cama do quarto vazio depois do jantar e do banho que a fizeram parecer mais com a mulher que um dia ocupou aquela casa. Ele a abrigou e deu-lhe comida, mas o amor que ela tanto queria não podia mais ser dado. Aquele amor só existia nela, um restante de amor.

sábado, 4 de junho de 2011

sob a pele

Dona Orelia Martins em "Sertão Sem Fim" de Araquém Alcântara (2010)
As rugas não são apenas lembranças do tempo, são vestígios de dor, de sofrimento, marcas de desilusões guardadas e engolidas e digeridas em silêncio. Do rosto ao coração. Os olhos envoltos, as mãos denunciam: trêmulas. Menos fortes. As rugas e a pele flácida.
    É o fim da beleza para alguns ou o início de outra beleza para uns. As rugas são a beleza da velhice, pois quem não é belo assim é feio esticado, reconstruído, mascarado. É a experiência às vezes cega, às vezes sabedora. É o cansaço de viver. Um sonho não realizado, o amor abandonado pelo beijo não roubado deixado para trás, os tempos difíceis. A pouca visão de olhos mais secos. 
    O tempo que às vezes ajuda a deteriorar a mente que semana passada era sã e hoje impede de levantar da cama.
    São os cabelos brancos tão vivos sob o sol.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

em maio

Deixe que o mundo gire num meio dia, ao sol esquentando as paredes. Um dia pra tanta pouca coisa. Para tanto pouco amor sentido, tanto pouco amor retribuído. Tão pouca cor de sorriso. Mais frio é o silêncio do mundo. O silêncio indiferente da incerteza.
    Acho que perdi os pontos, o fio do tricô, perdi o tom. Ou acho que alguém os roubou de mim. A camisa desfiada do fio solto que não pôde ser costurado até o final. A camisa vai se desfazendo nas horas quietas. Ela sucumbe ao tempo. A camisa que visto. Eu fico nu. Eu fico aberto. Um alarde em meu peito.
    A incerteza da indiferença.