quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Eu chovi
e o céu lacrimejou.
Foi uma noite em tormenta.

cirandeira

No primeiro passo eu olhava para o céu. No segundo, eu olhava o mar. No terceiro, eu olhei o chão e vi teus pés a cirandar. E os cabelos avoando com o vento que te abria o sorriso inteiro. Quase quebrei a ciranda quando me perdi em tu, mas meu coração logo se recobrou e pegou o passo e os pés se guiaram.
E fui pulando de mão em mão até chegar as tuas e segurá-las com a vontade de não soltar mais nunca. E descobri a cor de teus olhos quando eles me fitaram instantaneamente ao aperto das mãos. Tão negros quantos teus cabelos e tua pele reluzente ao sol. Tão negros que me perdi novamente, mas meu coração continuou ali, no batuque da zabumba, nos teus pés descalços, no sacudido do ganzá.
Já você não percebeu que minha mão queria amarrar-se à tua. E teus olhos voltaram para o mesmo estado de rodar e sorrir. Mas não há aperreação se o que me vale é o que contenho, mesmo que recém-nascido e que ainda precise de todo acalanto.
Eu que cuide do que me nasce. Você que cuide do que lhe nascer quando me aperceber no espaço de coração.
E vou rezando para que essa ciranda não acabe e meus dedos percam o instante dos teus.

domingo, 23 de dezembro de 2012

entrecortada

Silencia o mundo
Deito em tua cama, pois é lá onde encontro teu corpo. Pois é todo meu, o espaço e o tempo, e o físico incontável. Deito em teu peito para escutar o que reverbera e ressoa, o segredo visceral como arrebentação. Profundo. E meus olhos: perdidos.
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Poética
Abro um parêntese em meio ao teu olhar. Para o silêncio que ainda existe sobre os tons de tua íris.
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Deitado sob o céu
As estrelas desenhadas no teto de gesso não brilham como meu sorriso. Nem formam constelações. Quantas vezes elas já viram brotar amor desses lençóis encardidos que me acobertam?
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Fresta
Quando tu saíste, eu saí de mim. A porta se fechou e eu saltei pela janela que eram os olhos que viam teu adeus. Escorri pelo meu rosto e me provei nos meus lábios até secar.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

adorno


Como se teu beijo derretesse o mundo. Eu enlaço teu corpo nu com meus braços e enfeito minha pele de tua cor de aquarela. Mas teus cabelos estão postos ao vento, feito nuvem de sol. Como se teu beijo derretesse o próprio calor.
Ofegante, é o céu avermelhado que encobre pensamentos e a vista – em distúrbio agudo. Não sei que horas são e a madrugada consome sob trinta e nove graus o que resiste à temperatura. Eu resisto ao estado, em mente e pele; persisto ao segundo que tende a evaporar-se ao movimento do olho que pisca. Pisco e me visto de passado do piscar seguinte onde já estarei despido. Assim como prevejo minha mão em deslize por tuas costas.
Meus movimentos são condensados, mínimos e irreversíveis. E você parece estar plena sob os lençóis perfumados e tingidos de carmim nessa primavera sem flores, mas que floreia em minha boca.

sobre ilustração de Guto Stresser

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

descida

Eu desci de coração apertado as ladeiras de Olinda. Na garganta um nó segurando esse choro por deixar lá em cima todo um pedaço de mim.
Ia partindo. Alias, íamos partindo. Voltando para o que era de cada um, mas na certeza de que tudo ali era nosso, em cada cor e azulejo. Quando olhei para trás, não te vi mais e a saudade já se fazia tamanha. Até que uma hora o nó se afrouxou e tudo se desprendeu.
Nunca me doeu tanto ir embora.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Quando minha boca encostar-se à tua e abri-la encontrando-te a língua geográfica. E me perder em algum abismo ou encosta, dentre as matas desvirginadas. Vulcão em erupção, e serra e mar. Extraio o sal de teu suor e tu se fechas em eclipse lunar. Até tuas unhas cavarem grotas em minha pele qual terra e encontrarem o que não se vê por olhos desnudos ou de lunetas.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

frevo de nara

De lá do alto da ladeira vem descendo o colorido anunciado em estandarte. São amarelos e confetes e serpentinas que pintam o céu e plumas e azuis. Vem descendo as fantasias cheias de alegrias e aquelas tristezas indissolúveis de carnaval. Para cada sorriso, um dente é desilusão.
Descem as mulheres com seus vestidos bordados, em lantejoulas e paetês. As mãos espalmadas ao vento e nas sapatilhas que recobrem os pés deslizam em lirismo.
Entre todas, está Nara. Seguindo e rodopiando pelo frevo e o asfalto. Nara, tão branca e de cabelos tão negros quanto o céu dessa noite, às vezes se perde entre a melodia que entra e que sai ou no girar daqui que dá em passo pra lá. Em seu peito há um coração tatuado. Contração sincopada.
Os postes iluminam de quase-nada as ruas emaranhadas que agora se recobrem de paralelepípedos. Entre os meios-fios: o bloco e Nara de sorriso breve. Só avista os coloridos das casas enfileiradas, entre os olhos que observam, e seus pensamentos flutuantes de lembrança. Houve um beijo roubado naquele baile da Rua São Domingos. Ela numa máscara veneziana e ele brincando de papangu. Sua mão leve.
Agora, o bloco segue sozinho em meia-luz dobrando a esquina. Agora, Nara segue em nuvem. Ela chora enquanto canta o frevo entoado pela orquestra de pau-e-corda. Há um frevo de saudade.

domingo, 14 de outubro de 2012

oco

Como Clarice em muitos instantes, estou morto nestes instantes. Um processo de morte ou a parte de mortes. Morri sem nem sentir, declinando pelas linhas, até que me apercebo inerte. Parado em vazio pra qualquer canto que olhe ou toque. Morri não sei de quê nem sei de quando, mas ainda há suspiros como este que insistem. É como se adormecesse e em sonhos eu respirasse completamente e – inteiro vivo – de mim nascessem tudo que me continua. Enquanto permaneço sem pulsação.
Não morri da vida, mas, sim, do me dizer (ou só do dizer qualquer). E não há tristezas nessas coisas aqui. É tudo um pensamento surgido entre o vão. Uma luz para clarear meu rosto ou só para ocupar a mão.

sábado, 22 de setembro de 2012

amor do dia (trancelim de ouro)

Tem o dia amanhecendo e ela acordada desde as cinco horas. Café passado no fogo esperando fervura, vassoura na mão pra varrer o terreiro, vestido florido de rodar quando se dança. Ela agua os pé-de-plantas nas caqueiras e as tulipas nos vasinhos que enfeitam as duas janelas. Escancara o restante das portas para abrir de vez a venda. Três portas amarelas grandes e senhoras.
Passa Dona Zefinha e um bom-dia. O cheiro do café fervido já chega na outra esquina. E chega também o pão vindo de lá da padaria de Seu Messias, que sempre manda um sonho de cortesia. Ela sempre sorri e agradece.
Café na garrafa, pão na vitrine do balcão. Pendura as cordas, o barbante, o fumo de rolo e a mortadela. Tira a poeira dos potes de confeito e das prateleiras meio vazias – que é já fim de mês. E se debruça sobre o balcão e espera.
E vem um menino que compra um real de pão e outro de mortadela, vem um bom-dia só de passagem, e vem um que pede um pequeno. E a manhã vai se arrastando entre conversas e calor ameno. O sol se preparando para ficar a pino no mesmo tempo que o cheiro dos almoços incensa a rua.
É quando vai dando a hora e ela já se pronta de espera. É quando ele adentra a venda de mocassim e calça social, camisa abotoada até o pescoço e embrulho debaixo do braço. Encosta-se no balcão e pede um quartinho para abrir o apetite. O perfume de alfazema a faz sorrir de dentes amarelos. Ele sorri de volta e fala do tempo quente. Ela acha que chuva só lá para o fim do mês.
Outro quartinho para aquecer de vez a goela, coça a barba, olha a hora. Tira do bolso um trancelim para pagar a cachaça. Os olhos dele brilham inda mais que o sol. Oferece o pescoço para que ele mesmo o coloque, e ela sente cócegas na delicadeza do instante.
Ele vai embora com a fome que lhe consome, e ela fica ali com o amor que lhe aperta.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

lis pector

Entre a mulher e a flor não há pétala decaída. Não há espaço. Sobre o móvel indecifrável, sob os olhos inquestionáveis, a mesma cor abandonada. O som em tempo-silêncio. A curva imperceptível do vestido que pesa – e não há leveza que se revele. Ela pesa. Mesmo com o rosa das pétalas, mesmo na delicadeza da haste, mesmo que o segundo se acabe.
Há o cheiro de lágrima sobre o perfume da flor. A flor que parece reflexo do físico e do íntimo dessa mulher. Há o coração desbotado. As paredes em contraste. E as mãos perdidas.
Uma vida inteira em poema – em soneto – declamado à beira do olhar. O instante que sai no respirar. Nela. Na pele dissonante que recobre todo o estar e ser impróprio e inacabado. Em um peito bate a cidade silenciada. Em um peito a flor perdida.

sobre ilustração de Gu

sábado, 18 de agosto de 2012

a história única de todo o amor

Quando você volta para mim, eu ligo o rádio de manhã bem cedo para deixar a casa perfumada. Mesmo que Waldick chore suas mágoas, o cheiro é tão feliz quanto o das rosas que roubei naquele jardim da rua de trás. E pelas janelas parece o mundo a adentrar. Já sinto teu cheiro nas curvas do meu corpo.
Vou tirando a poeira ajuntada nas quinas, no tapete da sala, nos nossos retratos dependurados que roubam (tantas vezes) a atenção dos meus olhos esguios. Preparo a casa para a tua chegada, e meu corpo para teu amor – que o coração parece ter nascido pronto. E espero defronte ao relógio. Com um café amargo, com uns poucos cigarros e qualquer coisa a mais por viver.
Daí que você chega e meu sorriso se faz vivo. Te espero ansioso encolhido na poltrona azul, de regata e cueca, mesmo nesse frio. Você se despe do que desimporta e me aperta entre teus braços e boca. Te dou um sabor de amor guardado e tu me dás o sabor do mundo que és.
E não me importa que estejas marcado por outras bocas, que na tua pele eu sinta o gosto de outros homens, porque no instante de agora é sobre meu corpo – e dentre mim – que tu se deita e se conforta. É o próprio gosto de tua pele. E minha carne pede para estar entre teus dentes.

para Felipe

terça-feira, 7 de agosto de 2012

de um homem que nasce

Meu corpo nu na tua boca crua. Tu me comes com as mãos e os dentes, que os olhos já se saciaram. Meu corpo marcado de tua fome – devoras! Não sou homem de meio amor, de meio-dia, de pouca coisa. Meu corpo não é metade. Meus pelos, meus músculos, meu minúsculo amor não cabem entre teus dedos.
Mas me rasgue (e sangre)!
Que dilacerado eu sou mais fácil de comer.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

assopro

O vento que assopra no quintal
e faz assovio entrando nos ouvidos
e na pele o arrepio
e na barriga, borboletas
na mente faz vazio
calafrios.
Tu cheirando meu cangote.

terça-feira, 24 de julho de 2012

meio-ano-meio

Num meio-tempo
da andança
de todo essa e nossa vida

– ano por meio
de todo pronto amor.
para Gu

sexta-feira, 13 de julho de 2012

nua

Ela fecha as janela e às vezes as cortinas dos olhos também. Inalterada por alguns segundos. Guarda aquela dor lá dentro que por pouco não se confunde com gastrite. Deita-se sobre o cansaço do dia e vai despindo o que não é: a perfeição do escritório, o despudor do banheiro (quando a língua daquela moça a penetra), o bom dia aos vizinhos, a ideologia comprada, e há coisas tantas. Ela dorme despida até da carne branca.
O suspiro que prolonga em bocejo.
Mas não há retrato possível que se possa fazer dela quando ninguém a observa. Mesmo quando não há os olhos – aqueles – alheios, há os próprios-seus que a avistam dentro do mundo fora de si. E ela é tão alguém que é muito pequeno para ser ninguém. Apenas eu, que existo só nessas linhas de contorno, poderia desenhá-la o que se é ela quando não há ninguém: (quando o sono lhe acomete). Mas é tão lindo vê-la dormir que fico a avistá-la sem nem outra vontade. Não se quebra o silêncio de um coração.

para a corrente literária “Quem é Você Quando 
Ninguém está Olhando?”

domingo, 24 de junho de 2012

acorda

Sem aquele destino certo que o tempo parecia ter lhe prometido, ou o próprio que ela mesma se prometera, ela descansa-se na beira do caminho. A poeira toma (de) conta só do vento se passear. No cesto ali jogado, leva as roupas, uns livros, os retratos salvos, o que há de se comer, o que há de se viver e chorar.
Ela descansa o corpo e os olhos da poeira. Solta os pés da obrigação de sustentar sua carne magra e a cesto que carrega os seus. A rudia desfeita enxuga o suor. Não sei se ela se recupera do cansaço de viver ou de andar – ou se isso mesmo se faz diferente.
Vivê-la é um bocado grande.
O vestido encarnado é a quebra do tom pastel disso. Vê-se de longe o colorido unicolor. Qualquer olho vibra ao perceber. Ela se limpa da poeira que lhe pousa, sacode a cabeça e os cabelos desgastados postos entre a liberdade e a prisão. Levanta os olhos e avista o sol – à vista – que lhe queima.
É hora de ir simbora. Que o mundo é bem o momento onde seus pés estão. Que todo amor é apenas o que seus olhos verão.

terça-feira, 12 de junho de 2012

é um dia, maria

Entra junho e entram os santos. Maria enfeita o terreiro de frente de casa com as bandeirinhas coloridas. Aprega um prego no muro, outro no cajueiro, puxa o cordão dali e outro prego, outro cordão e tudo vai se colorindo.
Já é quase dia de Santo Antônio e só agora é que ela se pôs a enfeitar a casa. É que Maria andava adoentada, de cama por mais de uma semana. Só agora é que botou os pés no chão, pôde enfeitar a casa e botar o santo casamenteiro de cabeça pra baixo. Lá no altar de madeira, o Santo Antônio via Maria de ponta-cabeça rezando de manhã bem cedo, no dormir do sol e no dormir do corpo. E não era de se espantar se ela sonhasse que estava fazendo outra reza.
É que Maria gostava do cheiro das fulô que perfumava a casa, mas queria também o cheiro de outra pele, um xamêgo, um calor atrás da orelha.
Ela não se sentia tão só, mas não se sentia tão muita.
Naquela tarde passou o tempo a cozinhar o milho, amarrar pamonha, cantarolar o forró do rádio, alimentar esperança. A madeira da fogueira já pronta se molhava pela chuva fina de meio de ano. Ela olha pela janela no desejo de que estie. Mas é só chuvisco de sol partido entre nuvens. Logo ele se apodera do mundo.
Forma-se arco-íris.
Agora é lua, são estrelas e o céu limpo. Já dá pra ouvir o barulho dos fogos, o pé-de-serra lá mo palhoção, o cheiro das fogueiras e do milho assando. E já são horas de fim de esperar pelo amor chegar. Maria acende a fogueira pra clarear e se esquentar, senta no tamborete e espera a noite findar. Até lá o Santo Antônio fica de pés no ar pro acaso do amor pedido chegar. E espera, que a esperança sempre lhe vestiu. E não é coisa que se acabe com o apagar da última brasa. Maria tem o coração aceso.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

a dança da trapezista

Em todo ar ouvia-se a melodia da caixinha de músicas e da bailarina a rodopiar em seu lugar. Esbranquiçada a girar frente aos espelhos do camarim que refletiam a mulher a se preparar. Fora a luz do abajur, seus olhos eram o que mais coloriam o espaço. Retocava o batom vermelho, o preto envolto dos olhos, a saúde para as maçãs do rosto. Sua roupa tão branca quanto a própria pele ao ponto de confundirem-se.
Confirma-se ainda mais expressiva cada linha do seu rosto marcado agora pelo sorriso penetrando-lhe música tecida pela caixa que dança a bailarina. E seus pés tratam de acompanhar a pequena valsa. Os pés descalços ao chão de madeira. As mãos voam entre seus cabelos ruivos tempestivos. Envolta no todo espaço seu aqui.
Ao som no picadeiro, a melodia da caixinha de música vai silenciando. É o anuncio do seu espetáculo debaixo da lona de colorido retalhado. Ela observa os cabelos, ajeita-os levemente ou prudentemente, desfaz-se do sorriso com o qual dançava e veste – ou talvez ensaie – o sorriso-público. É o guardar debaixo das cobertas a bailarina que serelepeia na solidão do camarim. E ser a trapezista de encantamento alheio.
De costume de tanto pedaço de mundo que já pisou, ela segue a olho-nu sem os sonhos que lhe são. Adentra ao picadeiro anunciada e aplaudida. Sobe pelo mastro mais alto enquanto fintam-lhe as crianças enfeitiçadas de cor. Lá em cima não vê o mundo. Agarra-se ao trapézio para voar. Infla os pulmões. Fecha os olhos. E vai.
Os cabelos riscam o céu enquanto corre no ar.
De trapézio em trapézio, ela é livre nos momentos em que voa. Como se fosse dança, ela gira e cambalhoteia. Como é dança o que sente, esquece-se de segurar-se. E o trapézio cruza vazio de mãos. E ela abre o sorriso até a imaginação.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

natimorto

Henry Ford Hospital (La Cama Volando) - Frida Kahlo - 1932
Quão triste é ver um filho morto enquanto ainda sai de meu próprio corpo. Ainda banhado no líquido das vísceras, ainda levando-as apregadas. Parece inútil o esforço que fiz para contrair, para a respiração, para o sopro de sangue que lhe dei.
Houve a morte pelo próprio umbilical ou a infecção pelo que é vida.
E agora, padece ali o já fétido resto. Não o enterro. Não há necrológio. Guardo-o, impróprio. Na terceira gaveta, pois ainda é parte de mim. Até que haverá o dia que não exalará mais catinga.
Não é a primeira vida que meu corpo aborta por não sustentar.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

afinal

Quando o adeus fez-se grande demais, eu me trouxe aqui. Para pormos um ponto final ao tudo (ou o inverso), ou para que abrigues a poeira de minhas malas. Um pouco me importa onde ficarão meus discos, minhas histórias em quadrinhos, meus livros. Já minhas roupas, eu nada me importo. Jogue-as numa caixa de papelão, debaixo da cama.
Trouxe uma violeta: para a nossa casa ou para o final.

quinta-feira, 15 de março de 2012

embora

Não há centímetro de pele que esteja enxuto debaixo daquela chuva inesperada. A espera era infinita, o tempo brincava de estancar. Na verdade a espera de tantos anos longos a fizera chegar ali horas antes do esperado. A inquietude lhe tomou desde quando a carta chegou anunciando a volta dele-amado. Tantas folhas caíram desde que ele-amado foi embora, sem dizer o que ou pra onde. Tantos amores findaram após passarem pelo seu corpo.
Ela tem pés tão bonitos.
O céu estava em escuro, era a visão do horizonte da estação. Chegavam trens dali, de acolá, de mais além. Partiam e desembarcavam tantos incontáveis rostos. Adeus e bem-vindos. Ela sorriu imaginando
Tudo é úmido: a espera, seu coração. O sol surgiu tímido pelo fim de tarde que já era. Entre as nuvens, os raios secam a passagem da chuva. Seus cabelos encharcados permanecem em pingo. É como o contar das horas – cada pingo. Em conta-gotas.
De longe não se vê mais trens. E já são horas. Seus olhos estão agoniados mirando o horizonte. Seu coração anseia. É como esperar a porta abrir de chegada ou o telefone tocar. Ela ensaia novamente um sorriso de incontável felicidade. E o horizonte não muda.
E já foram horas.
Ela perde o sorriso a cada passo do ponteiro do relógio que agora parece ser carrossel. Logo a noite adentra. Logo a noite amadurece. O horizonte agora é impossível. E sua esperança apaga-se juntos as luzes da estação.

domingo, 4 de março de 2012

purificação

Prenda-se no meu braço
pro meu sangue te entrar
e eu me purificar
em tu.
E deixar aquela gota
qual resquício nas veias e coração.
para Gu

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

eu e você (de carnaval)

De som só o quebrar das ondas, o vento brando. A escuridão. Seus corpos entrelaçados, amados, alcoólicos. O vinho se derramava nas peles, a saliva entre os poros. A areia era cama, o sal, a lua em cheia. Palavras sussurradas, os labirintos dos cabelos, entrelace de dedos, de pernas.
Ama-se tão docemente, as horas que não existem, o cheiro de flor que inda persiste nesses fios de cabelos negros. O tempo que não acorda, passa jangada, passa o bloco com o frevo que parece morrer em folia.
Quando amanhecer, quando o mar parir o sol, entre as sobras e restos, entre qual amor.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

sobre as serpentinas

Entre o colorido dançante da roupa do caboclo de lança, seus olhos se cruzaram. Atravessando a rua, seus olhos, entre tanta gente. O asfalto quente e o vento marítimo. As serpentinas colorindo o céu, os confetes sujando o chão, as luzes.
A noite pode ser assim: quente como coração. Como esse coração do lado direito da rua, que fervia, queimava. Ao passo do instante. A um passo do sorriso de infinito.
As mãos paralisadas, cada qual segurando seu álcool efervescente. Do lado esquerdo, os pés que acompanhavam o tocar, agora também paralisados. Porque algo não era mais, nem vento, nem som, nem cor. Algo era dentro, além de interior, um bloco a entoar.
Vê aquela flor na boca.
O cheiro de lança-perfume, o cheiro de felicidade, um coração de lirismo. A pele que necessita.
A pele que implora o suor da outra, o álcool do sangue. Mesmo atrás da máscara que acobertava quase o rosto, os olhos se expunham, o sexo se fazia.
A boca que se abriu, de saliva, de coração acelerado.
Aquela serpentina última que caiu. O batuque do maracatu a levou, com suas cores, com seu pulsar. Mas o pulso ainda há. O asfalto ainda os separa. Não há mais ninguém, todos seguiram o cortejo. Menos o cheiro e os olhos. A máscara caiu. Ergue-se o passo.
Oh, quarta-feira findada, sobre as cinzas e as serpentinas, nasce um carnaval.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

amor-de-homem

“Avoa”, disse ele soprando.
E o vento que refrescava aquele meio-dia quente de sol nu, levou essa pétala de dente-de-leão que antes repousava entre seus dedos longos: entre seus sonhos. Seus pensamentos só eram de que o vento – esse mesmo vento que leva a pétala – que o vento traria um amor assim para ele.
É que dizem que quando se sopra uma pétala dessas de dente-de-leão (esse amor-de-homem) pensando ou pedindo um amor, dizem que quando você a vê retornar é sinal de que o amor, aquele amor que foi pedido, está próximo.
Então ele esperou pela pétala. Pelo vento. Pelos ares. Uma espera de desejo íntimo revelada somente nos olhos. Mesmo quando eles dormiam. E foram tantas noites, tantas lágrimas, tantos ventos alheios a ele. Tempo que nem se conta.
Até que veio janeiro.
E com janeiro veio aquele sorriso colorido de linhas tão amáveis. Vieram os braços que apertavam, os olhos que amavam, veio o coração que existia. Aquele amor para ele.
Serendipite.
Adentrou-lhe todas as portas e janelas. Deitou-se na cama: em seu corpo. Em seus pelos: fez aconchego. Dois.
E quando o vento lhe trouxe de volta aquele dente-de-leão, que pousou manso em seus pés, sob um mesmo sol, ele já sabia de antes, pois seu coração – que não era apenas seu agora – o coração já havia lhe tatuado amor nos dentes amarelos e em sua carne.
para Gu

domingo, 5 de fevereiro de 2012

em oferenda

Ela enfeita-se de branco na roupa, bordados, flores de chita, brincos de espelho, batom vermelho, dedos pesados de anéis que contam mais que os próprios dedos, unhas, pulseiras, penduricalhos, balangandãs. Seus pés estavam nus. Ou vestiam areia.
Fevereiro estava findando seu primeiro passo. Eram os últimos suspiros daquele dia. A noite se estrela em estrelas.
E ela também suspira: em fim.
Havia também escrito uma carta para essa mãe de orixás. Seu corpo era a folha reciclada. As palavras rabiscadas que se contorciam pelas suas curvas, como nos seios. As entrelinhas eram seu coração. Seus pontos: seus sinais. Os dentes brancos. Seus pelos eram. E seu vestido branco bordado cobria e guardava o que escrevera. Por que não é para os olhos de ninguém, apenas para as mãos dessa rainha do mar.
Seu corpo cheirava a incenso de maça com canela, vermelho, como as rosas que repousam na areia, livres do aperto de suas mãos intensas. De suas unhas rasgantes. Mas sua boca era de fumaça do cigarro que queimava.
O mar estava aberto. Chamava e se despedia. E seus olhos o penetravam imensamente. Os cabelos voavam em dança de encanteria. Pareciam negros que eram, ora pareciam azuis. Em dança de seu corpo parado.
Mas não havia relógios, nem ponteiros, mas fevereiro entrava em seu segundo passo. Ela bem sentia. E levantou-se quieta, apanhou as flores sujas de areia. Seus passos se marcavam na areia molhada do caminhar leve. As ondas tocavam seus pés, puxando-os, amando-os. Seu corpo em pano branco já se perdia nessas águas.
Águas que se abriam: como caminho. Seus pés já pareciam terem sido marcados ali. Pareciam estar em paz, em casa, em coração.
Até seus cabelos se marcarem qual água-viva que bóia na água, flutuando nesse mar que parece vinho.
O mar a engoliu qual vestido cobre o que é seu. Sua carne era comida.
Iemanjá a recebeu em oferenda. Em canto de flor.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

aprazível

Do teu corpo sobre o meu que nunca esteve. De teus olhos fitados aos meus que se utilizam de nossas roupas. Das mãos percorrendo meu sorriso, minha pele árida – tuas mãos macias – meus poros.
A luz do quarto iluminará nossos passos que não serão de pés, ou a dança, de todo o nosso corpo que será carne única, emaranhado-se. A música que cantarei entre as respirações urgentes de nossos suores melando os lençóis. De te olhar meu – de perto. E tu me olhar teu – entre-vista.
Não haverá resenhas, apenas nossas respirações, as batidas do coração acelerado, o enroscar dos dedos.
Não haverá tempo: apenas ali.
Consigo ver além da janela. O céu é claro, o tempo é inválido e frio. Tudo é uma poesia, pois nosso sangue – que é de nós – nosso sangue percorre minhas linhas e teus rabiscos. Extensão de nossos vasos sanguíneos. Será também continuação de nossa cama.
Já são horas. Deito no teu peito, tu deitas sobre meus sonhos. Nossos pés se amando. Abandona-se o cigarro vagabundo. Agarro-me no teu corpo. Teu cheiro é o que me percorre. Não quero a certeza do mundo, basta a certeza de nós.
para Gu

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

bodas de algodão (2 anos)

Andei pelos meus passos, mas não há cheiro de mofo. Nem sinais de bolor no que já foi escrito em meus cordéis. Vi o que senti, o que falei, o que quis ter às vezes tão intimamente – que nem eu mesmo sabia –, vi o que dei cria: embalei em meu colo quente.
Que passam as nuvens, as dores, aqueles amores.
Poucas coisas, confesso aberto, poucas ainda perpetuam hoje na pele. Alguma primavera, alguma estagnação, algum leão. Mas o primeiro verão ainda está longe e creio – de meus olhos que brilham – creio que chegarão algumas flores para mim, de um sorriso bobo, de um amor cativo, de um rabisco-poesia.
O que parecia tatuagem era só sujeira.  No mais, soltei sorrisos, pois ando de uma alegria que só meu coração e quem está enroscado nele entende.
E minhas veias levam o meu sangue d’utero para o que nascer.

domingo, 22 de janeiro de 2012

a rita

A menina pintou seus cabelos de vermelho, pegou a guitarra empoeirada e saiu. Em seu rosto um coração se pintava, em sua mão, o coração; em seu peito-vermelho. O vestido branco de noiva que usava arrastava algumas pedras pelas ruas de paralelepípedos desalinhados. O céu nublado que poderia chover mesmo que o sol se estampasse em seu sorriso.
    Caminha noturna a menina cor-de-sangue-amor. Seus passos inquietos. Incontáveis olhos de mercúrio a observavam e a julgavam naquele passar. Podem ser já as horas do fim da tarde, marca o relógio de vinte e dois rubis. Seu coração avoa em fuga, entre carros que passam pelo sinal vermelho. Ela corre pela cidade cinza que se traduz nela, em sua pele branca de vida, em seu pulso incógnito.
   Quatrocentos cruzeiros leva no bolso, mais as chaves do apartamento, um beijo, seu fruto proibido. Eu sei das horas que são, mas essa cidade parece acordar ou viver apenas agora. Os jogos da calçada, pintasse o chão de seus pés. Ela não liga, ela se inclina.
    O vento dá vida aos seus cabelos encobertos pelo véu. Ela fecha os olhos e ouve os sussurros do mundo. E sussurra.
    Hoje é dia 36.
   Seu coração de sal de fruta em copo d’água. Rota de seus olhos dentre pele, rota alterada: corre (corre). Envereda pela lua ativa que se supõe entre as nuvens escuras. Quais estrelas são seus dedos que se vestem em fantasias na melodia desenhada em sua epiderme – transparece.
    Roda o tempo, roda a menina, lança o perfume, roda a cidade, a cor cinza, seus cabelos em labirinto. Suas mãos se seguram e os pés dançam para não dançar na grande avenida: há sua chance, sua sorte, a saída. Ela enrosca-se à chuva que lhe lambe. A língua que beija a própria saliva.
    Hoje é o primeiro dia do resto de sua vida.
    (Algo mais?)
p.s. desculpem essas linhas tortas

Para a paixão da minha existência atribulada

sábado, 14 de janeiro de 2012

(da prosa e da poesia)

Poeticamente não gosto de pênis,
gosto de pau e de pica.
Em controvérsia me agrada
a vagina
(e a buceta também).

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

qualquer coisa sobre o lençol

Das coisas de amor que preparei, rasguei sem antes mesmo escrever, por que não há papel que caiba quando o vento não leva. Há um que de poesia mesmo nesse rascunho. Porque precisa-se de leveza quando o peso que colocam em mim. Mesmo abrindo-me em paz, querem passar em estandarte. Acho que minha mão não se encaixa em outra. Mesmo que eu queira a carne e alma, talvez o máximo que extraia seja a pele rasgada.
Não consigo pensar mais, me foge da mão aquela palavra e aquela outra e toda a frase. Queria estar alegre, mas a tristeza é uma vírgula.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

sobras

Na mesa o jantar a velas, o vinho, a toalha de renda. A janela aberta. De lua cheia se fazia a noite. De amor se fazia a casa. Violetas eram as flores no vaso de cristal barato. Violetas eram as flores que Marina mais amava.
    Quando o tempo lhe comeu mais uma hora naquela noite, Marina já estava meio embriagada. Também seus olhos queriam se fechar, pois vinho lhe deixava no risco de adormecer. Ela sorriu com seus olhos quase verdes – que Caio pensava serem azuis. Mas ela nunca disse que ele estava errado. Como também ela pensava que ele gostava mais de rosas que de orquídeas, e sempre no seu aniversário lhe dava um buquê dessas flores brancas e vermelhas em meio a tantos beijos: ele também nunca disse que ela estava errada – e deixava a casa se colorir mais pelas rosas.
   Meia taça de Saint Germain deixada para trás, Marina levantou-se da mesa meio cambaleando e abraçou Caio pelas costas. Suas mãos deslizaram pelo pescoço dele entre a barba mal-feita e o perfume cotidiano até o peito, e o coração acelerado.
    Ela lhe sussurrou um ‘eu te amo’ ao ouvido.
    O Portinari na parede. A Gal na vitrola.
    Despindo-se, ela caminhou leve até o quarto e deitou-se na cama. O sono veio no passo de uma respiração. Caio tomou o vinho que restava e seguiu o caminho de roupas deixado pela mulher. Ela caída na cama em sono, ele a ajeitou entre os lençóis: nua. Deitou-se ao seu lado como sempre fez, aconchegou-se ao seu corpo inerte e íntimo e quente de amor e vinho.
  Sua mão passeava pelos pelos atentos de frio que cobriam a mulher desnuda. Por entre seus cabelos, entre seus lábios. Por entre seus seios – dentre-pele –, ele penetrou no coração dela e, qual homem amado, arrancou dali todo sentimento que se fazia por ele. Cuidadosamente sem dor, sem alarde. Deixou o espaço em espaço-aberto, um vácuo, uma falta. Beijou-lhe a boca em vermelho-sangue, e a lua que parecia felicidade iluminou seus passos, pesados e incertos, de despedida.
   A manhã que nasceu clara veio acordar a mulher nua na cama. Uma cor amarela. Marina levantou-se sem saber o quê, mas sentiu aquela falta de que se tem notícias apenas quando intimamente morre algo-amor. Seus olhos procuravam-se.
    Fez um café amargo, sentou no chão do quintal, um cigarro de lado. Sentiu a dor no peito, um vazio de coração, desandou a chorar sem saber de quê. Um gole no café amargo, um choro derramado. Um dia de adeus.