quarta-feira, 10 de abril de 2013

o crime da mulher

Ecoou o tiro pela casa. A cidade em festa de padroeira cobria-se em fogos de artifício naquele instante. Ninguém além dela pode ouvir o barulho da arma disparando, e do grito que ela mesma deu assustada. Sua mão trêmula tapava a própria boca numa tentativa de silenciar o grito forte. A arma descarregada caiu no chão. Felipe, sobre a cama, ainda gemia enquanto seu sangue vermelho-encardido melava o lençol branco de algodão. Ela aproximou-se hesitante da cama e os olhos dele quase fechados a encaravam.
- Eu não te amo, mais – disse ela: pálida.
Os sinos da igreja badalavam anunciando a missa. Ela lavou as mãos e o rosto na tentativa de tirar a morte de sua pele, como se quisesse rasgar-se e em carne-viva não ser mais a mesma. Encarou-se no espelho talvez nem se reconhecendo. Do guarda-roupa retirou tudo que parecia mais importante: algumas roupas, uns livros de Florbela, um perfume, um pouco dinheiro que tinha, os cigarros que restavam. Tudo jogado dentro de uma mala azul quase rasgada.
Seus olhos aflitos caíram sobre o corpo do homem, agora, sem vida. O corpo sobre a cama dos dois.
Saiu.
Naquela noite as ruas nem pareciam as mesmas: cheias de gente à caminho da igreja com suas velas acesas dentro de garrafas de plástico. E toda a festa na praça em frente à igreja e as barracas de comidas e o parque de diversão. O barulho de fogos, de crianças felizes, de conversas felizes, do forró que saía do alto-falante.
>Ela, ainda atordoada, caminhava em passos largos entre as pessoas. O vento da noite lambia sua pele exposta pelo vestido curto cor-de-café. Chegou à rua principal e toda ela estava iluminada, com lâmpadas amarradas penduradas como bandeirinhas de São João, e as imagens de papelão da padroeira no alto dos postes. De vez em quando ainda se via fogos de artifício iluminando o céu pouco estrelado – podia-se até contar as estrelas.
Seu olhar perdido procurava por toda a rua uma saída. E ela só queria fugir. Deixar o feito, o sentido, o acabado, deixar para trás tudo naquela cidade. Como se pudesse esquecer. Como seu coração estava acelerado e dolorido.
E então, em um céu enegrecido, seus olhos acharam aquela gigante roda gigante iluminada para atingir as nuvens. Tantos vermelhos e amarelos e azuis em sincronia, em pisca-pisca, em claridade. No céu. O céu que parecia ser saída – única saída.
Seus pés em passos acelerados foram. Ela empurrava em desespero as pessoas que cruzavam seu caminho – reto percurso. Aos pés da roda gigante, seus olhos ergueram-se até o topo: o céu – parecia tão infinito. A mala foi deixada aberta para trás.
A roda gigante começou a girar. Ela subiu. Suas mãos em força agarravam a trava de segurança, não em medo, mas por – apenas – intensidade. Enquanto subia, ela sorria como se estivesse livre do mundo, como se nada mais pudesse lhe impedir. A cidade pequena parecia ainda menor lá de cima. As luzes, as casas. Quanto mais próximo do topo ela chegava mais a cidade parecia longe. Mas o céu, o céu não parecia mais perto. As poucas estrelas ainda brilhavam lá distantes: inalcançáveis.
Quando a roda gigante parou, ela estava bem no alto. Bem mais alto. Apoiou-se e ficou em pé no banco que balanceava. Desesperadamente ela queria o céu. Por que ele era em escuridão como o que era agora. Aquela culpa que lhe remoia do não-amor que se findou no corpo inerte e sem vida sobre a cama. Queria fugir daquela morte impregnada na pele. Qual sangue lhe manchou.
Soltou uma das mãos. A outra se soltou por si.
E seu corpo caiu ao chão. Um tiro ecoou em sua mente. E a cidade silenciou.

*conto selecionado para a antologia "ANE 50 Anos - Contos"

quinta-feira, 4 de abril de 2013

ato

Viver é um estado.
Morrer é um ato
que ao contrário,
no reverso-tempo,
é o instante de parir.