terça-feira, 28 de setembro de 2010

ela ele fim

Ela estava em pé, com o rosto inteiro molhado de lágrimas sob aquele mormaço do começo de verão dentro de uma cidade que não era sua. Ele apenas se levantou, pagou o almoço e “seja feliz e passe bem”.
    Ele a chamou para almoçar. Haviam discutido na noite anterior sobre planos e cores de flores. E os lençóis ficaram insuportáveis naquela noite. Ela saiu para o trabalho antes que ele acordasse para não o ver. No meio da aula, ela desconcentrada pelo acontecido da noite anterior, recebeu a ligação dele para um almoço quase cotidiano num restaurante habitual. Era a mesma comida habitual e o mesmo vinho cotidiano. Ela tinha uma felicidade de reconciliação como de sempre. Ele tinha a normalidade de sua vida nos olhos. Na segunda taça de vinho ela estava entregue. Ele apenas disse que ia. O vinho lhe cortou a garganta e sem querer quebrou um pedaço da taça na sua boca.
    Seus olhos fixos nos dele e sua língua fixa no vidro e o sangue misturado ao vinho.
    Ela sentada engoliu o sangue e o choro. A cidade era um pouco sua. Ele apenas se levantou, pagou o almoço e “seja feliz e passe bem”.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

círculo vicioso

Eu te amo agora e daqui a cinco minutos eu te amarei menos e passados oito minutos eu te amarei mais e depois te odiarei e a noite eu serei indiferente ao amor e na madrugada sonharei com uma festa onde danço sob as luzes mais coloridas. Quando acordar, vou amar a cama, e odiarei talvez o despertador. Nem lembrarei que você existe até que meu coração se acelere quando o telefone tocar e ouvir sua voz. E brigaremos e te desejarei a morte com todas as minhas forças, porque você não irá acreditar em mim e me xingará como se você não tivesse piedade e eu não tivesse sentimentos. Chorarei um dia inteiro e no outro me entregarei as baratas e no outro vomitarei e depois me jogarei nos braços de outros alguéns. Mas você dirá que me ama e meu ódio passará lentamente e novamente vou começar a te amar. E novamente vou começar a te odiar, como te amo, como no mesmo instante.

domingo, 19 de setembro de 2010

Pra modelar


O amor é adaptável. Ando aprendendo isso, ou criando isso. A gente vai vivendo e quando senti que ama e/ou é amado pega tudo aquilo de sentimento e amassa-puxa-estica-enrola e vai moldando como massa de modelar. Moldamos perfeitamente para a imperfeição que quase não é esperada. Não é que seja imperfeito, é que não é a perfeição que sempre esperamos. Ao menos que eu espero.
O amor é aceitável assim. E ficamos bem com a imperfeição desse amor. Quase sempre.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Le fabuleux destin

Car rate sa vie un droit inalienable.
"Pois estragar a própria vida é um direto inalienável.”

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Sobre mentira

Na verdade o ser humano como um todo é mentiroso. A mentira é sua invenção cruel e doce. Algo desse tipo. A filha de um sexo anônimo. É do ser humano mentir porque ele é assim, é de seu instinto, de sua alma, do seu carma, o que bem acreditarem. Ele mente para ser feliz ou para sobreviver. E a sobrevivência é na verdade dar vida à sua felicidade. O ser humano mente, enfim, pela sua felicidade. É de nossa carne a mentira, seja ela impregnada ou apenas de suspiro. É de nosso ventre e de nossas unhas ao rasgar o ar após nascermos. Somos assim, moralmente mentirosos – por natureza própria.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Um momento antes de dormir

Há luz no quarto. Muita luz. E a solidão é de costume.
Abafa-se os sons, a música.
Apaga-se a luz e acende-se uma vela. As sombras que se formam são mais reconfortantes e atraentes. É desse coração que se fala.
Ele deitado em sua cama, que confortado por seus sonhos, tanto ensaiou lágrimas e as prendeu. Por medo.
Ele não é forte. Mas que não se subestime a sua dor. Esse é um direito que ele tem: achar que sua dor é a mais aguda e terrível do mundo, por pequenos instantes ou por uma vida toda. É seu direito.
Assim ele deixa as lágrimas tanto ensaiadas correrem pela cama, como crianças brincando. É o seu grito de cansaço. Ele não respira tão bem.
É direito seu fingir ser feliz.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O instante da mulher

A mulher ativa acorda num domingo de ilusão.
Ela pena com seus passos lentos. E a casa é fria.
A mulher calada passeia pelos restos da noite no chão da casa, pelos corpos dormindo jogados.
A mulher nua sente o cheiro do sexo da noite.
A casa se mantém calada, a penumbra.
A casa é amarela. E queima feito sol.
A mulher que se espreguiça. Cansada – ela é cansada da vida de mulher.
A mulher passiva ainda ama. Ama quem não a ama mais.
Alguém acorda e a beija.
Há resto de querer-bem.
A mulher passiva é amada. Cobre-se com os lençóis no sofá e com os sonhos bons da noite. O resto de vodka.
Bebe o resto de vodka.
A mulher amada é quase vazia.
A janela da porta mostra a claridade do dia. A mulher quase vazia vê do terraço o mundo. A mulher quase vazia respira o ar de domingo.
A mulher ativa quer aquele domingo para ela. Ela sorri. E ativa, ela veste-se e sai, porque o mundo, ela sabe: é seu.