segunda-feira, 23 de maio de 2011

a mulher carpideira

A rua era tomada por uma enchente de gente; o sábado, dia de feira, os carros, os bichos, as gentes no centro da cidade. A prefeitura de paredes azuis tinha trêmula a sua bandeira no topo da pequena torre de uns dez metros de altura, a qual se via de lá de longe da entrada da cidade, visto que não havia prédios para atrapalhar o horizonte. A enchente de gente descia a ladeira da rua principal. Os homens que olhavam do comércio tiravam seus chapéus: os cabelos grisalhos ao sol da manhã. As mulheres cochichavam sobre as roupas de quem seguia o cortejo fúnebre. As mães reclamavam pros filhos se aquietarem. E a enchente de gente passava pela praça da igreja de Nossa Senhora do Coração, a padroeira da cidade.
   A empregada carregava a coroa de flores toda multicor de rosas, margaridas, gardênias, violetas. As cantadeiras que iam à frente do caixão anunciavam o enterro em direção ao cemitério:
*“Uma incelença entrô no paraíso,
    uma incelença entrô no paraíso.
    Adeus irmão, adeus,
    até o dia do juízo.”
  
   Seu Antônio vinha dentro do caixão. O homem rico da cidade que mandava e desmandava em quem bem quisesse. Ele caiu no chão do armazém morto pelo mesmo coração que o vivia, depois de tomar o quartinho de aguardente de toda noite. A verdade é que ninguém gostava bem de Seu Antônio e todos que acompanhavam o enterro o faziam por pura formalidade. Nem a sua filha lhe tinha muito carinho.
    Mas na condição de única parente, foi ela quem cuidou de tudo que se precisava. Comprou o caixão de madeira – madeira mais forte que as de muitas casas das redondezas. Comprou a coroa de flores mais ostentosa e colorida, comprou tudo o necessário para o velório e comprou as lágrimas da única pessoa que chorava no meio da enchente de gente. A carpideira – como era conhecida Dona Clarice  com seu vestido de renda preto, e o véu que lhe cobria parcialmente o rosto, louvava o homem carregado no caixão. Suas lágrimas na terra seca sob o sol forte nem umedeciam direito a pele já tão enrugada. Os gritos de falsa tristeza cobertos pela poeira que a multidão de pés levantava.
    Seu Agenor, marido de Dona Clarice, não ia mais aos enterros, mesmo que de gente conhecida, pois agora era o trabalho de sua mulher. Ali na cidade, quase ninguém mais chorava pela morte de alguém. A morte era coisa quase certa e a tristeza que se sentia já nascia conformada. Alguns dizem até que o calor é que evaporava as lágrimas antes mesmo delas saírem dos olhos. A única exceção era quando o enterro era de criança, quando se carregava o pequeno caixão de anjo, branquinho de nuvem: era coisa mais comovente.
    No fim do dia, Dona Clarice, já desfeita de seu papel de carpideira, chegou em casa pra preparar o café de Seu Agenor. Ele que descansava na rede em frente da casa esperando pelo jantar. Ela coava o café enquanto assistia à novela pela TV da sala um pouco virada em direção à cozinha, e o gato que se esfregava nas suas pernas.
    Por aqui, o sono sempre vinha cedo, as ruas ficavam silenciosas já pelo meio da noite, só alguns bares abertos ou umas rodas de fofocas nas portas.
    Depois do jantar, Dona Clarice se sentou no sofá pra ler seu livro de poesia e Seu Agenor foi dormir porque o sono já lhe pesava as pálpebras. Eram apenas eles dois naquela casa que foi dos pais de Dona Clarice, e onde ela nasceu e foi criada. Não tinham filhos. O único que tiveram morreu quando tinha quatro anos: a última vez que Dona Clarice chorou de tristeza. Ela entristeceu e emudeceu por um mês. O rosto de mulher jovem envelheceu tanto quanto os muitos prantos que chorou levando o filho para a cova.
    O dia amanhecia cedo. Dona Clarice acordava bem dizer junto ao sol ainda pálido. Preparou o café forte pra despertar, o cuscuz e o leite. Comeu e foi lavar as roupas. Varreu o quintal, aguou as plantas e quando os sinos da igreja anunciaram o primeiro chamado para a missa, ela entrou em casa para se arrumar. A missa de domingo era a única que ela ia, pois foi no domingo que seu filho morreu. Quando entrou na cozinha percebeu que a mesa estava intacta, do mesmo jeito que deixou. Seu Agenor não havia tomado café, nem comido nada. Estranhou o homem que se levantava cedo mesmo no dia que não trabalhava e comia como se tivesse dormido amarrado (“porque saco vazio não pára em pé”, era o que ele dizia). Nem o rádio que ficava noticiando as coisas das cidades vizinhas enquanto ele comia estava ligado. Dona Clarice foi até o quarto e Seu Agenor ainda estava na cama. Ela sabia que ele não é de dormir tanto. Ela sabia que ele não ia acordar mais.
    No quase fim da tarde daquele domingo o funeral de Seu Agenor descia a rua principal. O comércio estava fechado. Não houve a missa das seis da tarde, pois o padre seguia o cortejo. Diferente do dia anterior, quem acompanhava o caixão até o cemitério era por que tinha afeição. O caixão de madeira encardida era levado por uns amigos nos ombros. Não havia coroa de flores, só umas margaridas e uns cravos. As nuvens tapavam o sol, amenizando a longa caminhada. Ninguém chorava.
    Dona Clarice no seu vestido florido escuro ia ao lado do caixão, quieta. A mesma quietude do velório e de todo o percurso do enterro até ali. Só chorou quando, depois de passar uma hora abraçada ao corpo de Seu Agenor na cama, teve que se levantar para preparar o velório. Ali, ela não estava como carpideira e sim como mulher sofrida que prende a tristeza nos olhos.
    E ao longo do cortejo as cantadeiras entoavam:
**“- Uma excelência
    dizendo que a hora é hora.
    - Ajunta os carregadores
    que o corpo quer ir embora.
    - Duas excelências...”

*Autoria: Dorival Caymmi em “Suíte dos Pescadores”
**Autoria: João Cabral de Melo Neto em “Morte e Vida Severina” (1954-1955)

segunda-feira, 16 de maio de 2011

esquecer-se

Ele abriu os olhos depois de algum tempo. Sentado na cama de casal que havia comprado há pouco mais de um mês, olhava o guarda-roupa escancarado e as gavetas jogadas pelo chão: tudo vazio. Nem roupas, nem sapatos, nem os filmes e nem os livros de Paulo estavam lá. Nem o próprio Paulo estava mais. Paulo sumiu no meio da noite – ou bem ao amanhecer – e levou tudo que era seu. Deixou apenas o seu cheiro impregnado no lençol e o amor no coração de Antônio.
    As coisas entre eles não andavam bem, mas essa não era a primeira vez. Como qualquer gente eles tinham suas não-felicidades, seus ataques de ciúmes, suas crises existenciais. Mas não conseguiam passar mais que um dia brigados e corriam um para o outro pedindo desculpas enjoativamente e se amavam ali mesmo onde estivessem.
    Antônio, com seu pijama (que não passava de uma cueca), se aquecia com o lençol, e ainda olhando o guarda-roupa vazio custava a acreditar. Seria ele tão insignificante que não merecia uma pouca explicação, um adeus banal e medíocre?
    Pensar parecia inútil, simplesmente porque pensar não levaria a canto nenhum, simplesmente porque não havia aonde chegar. Acendeu o cigarro de desjejum e bebeu o café frio e aguado deixado no criado-mudo na noite passada.  A cortina amarela deixava o sol entrar tranqüilo pelo quarto. Era hora de esquecer-se de amar.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

mudança

“Eu não sou mais 
quem você deixou, amor”
(Adriana Calconhotto)
Eu não carrego mais o peso do passado, não choro mais pelo que acabou: isso tudo findou. Nenhum peso nas costas, olhos vazios de lágrimas. O tempo realmente cuida de tudo, ameniza, cicatriza.
    Mas é difícil crer nisso quando se dói, quando se sangra. É coisa de não se acreditar, de ser cético e às vezes desesperançoso. Mas o tempo não é movido a sentimentos, a esperança ou qualquer coisa humana. (A percepção de tempo pode até ser.) O tempo corre como tem que correr. O tempo leva o que tiver que levar. O tempo é senhor de si.
    Mas se tudo acontecesse novamente, novamente eu não acreditaria num tempo amenizador; juntaria todas as tristezas passadas numa colcha de retalhos, que é quase verdade que a “tristeza não tem fim, felicidade sim.”

segunda-feira, 2 de maio de 2011

de repente

Maria o amou desde o instante que o viu numa festa na casa da amiga jornalista: sorriso aberto, barba, camisa de flanela xadrez verde, o copo de vodka na mão. Já ele, não se lembra quase de nada. Bem, nunca se apaixonou, não era ligado em coisas de detalhes e tal. E lembrar-se de muitas coisas era demais para a primeira paixão. O que ele lembrava apenas era que os olhos dela penetraram nos seus.
    Dormiram juntos e no dia seguinte Maria já havia se mudado para casa dele. Ela se mudou por que a casa dele era maior e os gatos já eram acostumados com o cheiro dali. Ela trouxe seu pé de café, o pé de comigo-ninguém-pode, o relógio de vinil, a coleção de Mário Quintana. Organizou tudo para que ali não fosse mais a casa dele e sim “a nossa casa”.
    Na semana seguinte ele dormiu no sofá depois que ela bateu o pé dizendo que ele tinha olhado para a mulher da mesa ao lado no bar.
    No mês seguinte ela viajou para a casa dos pais no interior do estado, só uns dias, uma semana. Quando voltou o pé de café estava morto de tão seco de falta de água. Ela esbravejou. Jogou nele o que estava ao seu alcance, quebrou quase muita coisa. A maior confusão. E de noite fizeram amor no tapete da sala.
    Era quinta-feira e Maria acordou cedo, como de costume. Abraçou-se a ele e ali ficou até ele acordar. Ele abriu os olhos devagar com uma vontade de não acordar e beijou Maria como um bom-dia. Ela sorriu e disse que estava indo embora para sempre. Ele passou a mão em seus cabelos emaranhados e sorriu de volta; fechou os olhos para dormir novamente.
    À noite, eles esperavam o sono chegar, cada um em sua casa: ela com vinho, ele com café. Sem saudades, sem remorsos, sem. Que tudo que chega de repente, repentinamente também pode partir.