quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

indo

A indecisão de se olhar ou não no espelho e ser refletido invisível e incorrigível, por que talvez seja um caminho sem volta: ver o que se é: é insustentável. Uma coisa íntima. 
    Ser íntimo é um estado. Um estado doloroso (aviso!), ao menos quando se começa porque há uma obscuridade nas veias e artérias que começam a ser preenchidas de si mesmas (de si mesmo). Como quando se nasce e respira-se e a dor é tanta que se acaba chorando. E choro aqui também, escondido, nos travesseiros e camas e entre as paredes da casa. É doloroso até quem sabe onde. Não sei se ser íntimo é recompensável, se vale a pena, se ao final serei mais pleno e inteiro e sustentável de sentimentos e equilibrável. Mas sei que é por onde estou pisando, mesmo que nunca mais volte a ser desconhecido de mim.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

faça algo comigo

Faça algo que me entorpeça, que me faça cair em si, em mim, em tu que desconheço, seja monstro de si mesmo ou coisa mágica.
    Faço-me inquieto, urgente.
   Faça algo simples: de beijo, de abraço, de afago, de amor-amado, de sorriso, que nessas ruas de terra batida eu me perco.
    Faça o favor de me ver inteiro e completo e íntimo, mesmo que eu me falte pedaços. Pois eu tenho coração pulsante, selvagem, árduo. Ardo à espera urgente pelas possibilidades do mundo inteiro. Eu criei essa urgência: de meu corpo humano acordado e seco.
    Há um desejo imposto. Há um suor salgado escorrendo pelas costas nuas. Qual coisa fria. Não fria de falta de sentimentos, mas de excesso.
    Faça algo que releve o tempo, que revele a cadência de se estar.
  Faço-me voar sobre os desejos sobre as camas acesas de amor insuficiente. Que debaixo do travesseiro guardam-se as mágoas na esperança de acordar e elas inexistirem.
    Faça-me tudo, ou faça-me algo – simplesmente.
para Maurício e seu mundo particular.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

adentre

Pierre Verger - carnaval de 1950
Entre as pedras de mar obscuro e confuso de meu pensamento, eu passeio quase sempre esbarrando nas paredes, machucando, mas querendo chegar, onde. Depósitos de concreto nas veias cavas: vômitos de minha não-lucidez. Foi quando te disse coisas herméticas, por favor, não as crie. Afogue-as como faço às vezes comigo mesmo, como aqui.
    Não se segure em meus braços, disse-me eu.
    Sou eu nau que afunda coberto de sol, perdido em coisa. Sou perdido do mundo, sou estrangeiro daqui, pertencente apenas a mim. É o que sei e o que não quero saber.
    Apague-me a memória para que eu apenas lembre os sorrisos, por favor, não quero lembrar do reboco caindo e de quando eu morri. Apague-me de mim que sou terrível e não me quero. Ou talvez me queira, então não leve em consideração.
    Se gasta tempo para se sustentar. Equilibrando-se no chão descalço, que há medo de cair e de sangrar. Pior, se infectar desse sangue ralo, profundamente vazio de coisa própria.
    Entender minha carne fraca, minhas máscara de felicidade, minha cama vazia. Olha que horas são e eu não me entendo (mas o pior foi ouvir que não me entendes). Olha que horas são essas de se dançar. Não são horas de se dançar. Eu paro de fechar os olhos.
    Minha casa suja de lama. Logo agora que estou mais íntimo, mais meu.

domingo, 19 de dezembro de 2010

a escuridão

Naquela noite o bairro da Boa Vista ficou sem energia. Um apagão repentino. Edith tinha medo do escuro. Tinha medo não do escuro em si, mas do que ele pode trazer de si mesma. Já bastava o escuro das suas imperfeições. Já bastavam suas indecisões. Procurou desesperadamente as velas no balcão da cozinha, mas apenas achou o resto de uma e a acendeu rápido. Era meia luz. E isso não trazia muita segurança. Taquicárdica, ela ligou para ele para que viesse até a sua casa lhe fazer companhia. Mas ele não atendeu. Como, se sempre que ela precisava dele, ele estava ali: pronto, atento, amado? Como pode sumir? Ela chorou, enquanto o resto da vela se apagava. A escuridão era íntima e real. Onde estaria ele e seus olhos de amor?

sábado, 18 de dezembro de 2010

inteira mar

Quando Cecília mergulhou no mar, as ondas estavam mais puras. Soltas, as estrelas quebravam a escuridão intacta. Seu sangue inerte e fraco de possibilidades e amarelo de sol a questionava da sua sina de mulher.
    Cousa de ser apática com gente, seus olhos azuis fugiam de outros olhos de mesma cor certeira. De jeito certeiro também era seu sorriso de quem cresce sonhado.
    Quando Cecília sorriu pro mar, ela sonhava intempestivamente. Cecília amarga de desilusão, mergulhou como se o mar a chamasse para uma dança eterna. As águas apenas tocadas pela lua que quebrava. A lua apenas observava, voyeur desse sexo íntimo, inerente.
    O prazer de Cecília era doce sujo de carmim. Como pecado proibido intimamente, de vísceras infectadas e em começo de putrefação. Cecília que não era Clarice, que não era Carolina, que não era Maria, que às vezes não era nem Cecília: morria. Morria como quem respira. Morria como se morrem tantos outros. Mas, diferente: sabia que morria.
    Quando Cecília estava sob o mar, o sal temperou sentimentos restantes. E como sua pele brilhava. Parecia ter na pele todo um céu tatuado.
    Quando Cecília entrou no mar, o vento eriçou-lhe todos os pelos, como só um homem ao cantar Chico Buarque ao pé de seu ouvido na cama encharcada de suor havia feito.
    Quando Cecília boiou no mar – seus pulmões cheios de água e sal – seus olhos fixos na lua feita só para ela. Um sorriso seco, ondas cansadas. Cecília era inteira mar.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

sobre minhas linhas

Porque as palavras respiram com dificuldade e ânsia de ar puro. E criam-se quebradas e insípidas. Parecem graves e custam vidas, custam minhas vidas, custam o que tenho: custam o que tenho de doce e puro.
    E há a peleja entre o físico e o espiritual, desse sangue vivo com as palavras multiencardidas, quase inertes, curtas, quase inúteis.
    Quase inúteis para esse mundo externo que na há tempo. Como sou inútil nesse mundo, como sou inútil nessas palavras. Para que sirvo eu, nessas palavras? Mas elas me usam como descanso. E mesmo assim eu não sirvo.
    Entre essas paredes mofadas, elas sucumbem na esperança de voar, porque há tiros que as acertam e dizem: não há esperança para viver.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

o príncipe e o amado


E correndo montado em um cavalo completamente negro, cortava os carros estacionados na rua recém pavimenta. Ainda era dia, o calor se fazia. O príncipe montava como um cavaleiro pela rua que acabava em um campo, e no fim do campo: o castelo de seu amado.
    O que não era mais bonito que o céu pintado pelo arco-íris leve, quase que invisível. O campo tinha flores roxas e amarelas, e vermelhas. Mas a roupa do príncipe, que roupa, a roupa não importava. Pouco importava. Seu all star era vermelho.
    Na verdade o príncipe cruzou estados e meses pra chegar ali. Ele veio atrás de seu amado que há muito tempo não via.
    As laranjeiras já eram em flor nessa época.
    Qual vento forte.
   O castelo com seus tijolos aparentes, crianças brincavam na frente. O príncipe bateu na porta e gritou por seu amado. Gritou seu nome e o vento tratou de levar o grito até o alto da torre onde ele estava. O amado o olhou pela janela do alto da torre, um olhar de por que. E o príncipe estampava um sorriso bobo.
    O amado desceu a torre e à porta disse: “Vá embora, por que eu, eu amo quem não é você.” E fechou a porta, frio. O príncipe olhou a porta por um infinito minuto, achava que era tudo uma brincadeira e que a porta se abriria daqui a um instante inesperado. E a porta de madeira cheia de cupins. E os passos do amado subindo a escadaria da torre.
    O príncipe sentou-se no degrau da porta do castelo. Enquanto a noite chegava e a lua era cheia. Ele estava cansado. E no brilho de uma estrela cadente montou seu cavalo e seguiu sem rumo (pois o rumo que tinha, o único rumo que tinha era o do coração de seu amado).
    O príncipe chora a cada lua cheia e come apenas pétalas de laranjeira. Talvez hoje ele seja apenas um espírito, talvez ele caiba no coração de alguém.
    Mas seus olhos são tão bonitos.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

serendipite

por Francisco Barreto (15/09/09)
Quando você descobre coisas, talvez inimagináveis, apenas por um acaso, como na procura por sua carteira, acha debaixo da cama um anel perdido há tempos, ou olhando documentos encontra fotografias que nem sabia que ainda existiam e que te trazem recordações doces.
   Ou olhando as nuvens para saber se irá chover ou não e vê uma pipa multicolorida passeando pelo céu.
É encontrar algo que não se procura.
    Há séculos atrás havia um reino chamado Serendip, governado por um rei que tinham três filhos. O rei decidiu testar a sabedoria de seus filhos e disse-lhes que iria se retirar do trono, deixando-os governando o reino. Os príncipes recusaram o trono afirmando que o pai era o mais sábio e que ele iria governar melhor o reino que qualquer outra pessoa.
   O rei sentiu-se inteiramente feliz pela decisão dos filhos, mas ainda tinha dúvidas. Achava que a recusa foi por mera educação e não por sabedoria: assim enviou os príncipes em uma viagem a reinos distantes. Os príncipes, cruzando terras desconhecidas, fizeram várias descobertas – por acidente (ou acaso) ou por sabedoria – descobertas felizes.
   Em 1754, ao descobrir uma pintura da condessa de Toscana, Horace Walpole escreveu para seu amigo, Horace Mann, relatando o que achou. Na carta explicava que leu o conto “Os três príncipes de Serendip” e baseado nele, chamou a descoberta de serendipite, pois não havia melhor definição para ela: não havia palavra mais expressiva.
   Serendipite é encontrar um vendedor de algodão doce quando você passeia pelas ruas sem destino num dia amargo; quando à espera do ônibus encontra um desconhecido que irá ser a melhor pessoa da sua vida; quando no meio da cidade cinza você encontra flores quebrando o silêncio das cores.
    São pequenas coisas, pequenas descobertas felizes. É o acaso colocando algo que não é esperado no seu caminho. É encontrar coisas (pessoas) essenciais, mágicas, infinitas, doces: simples.

para Roberto e Otávio (serendipites)

sábado, 4 de dezembro de 2010

bem mais

Porque esse sexo não se resume ao orgasmo, do prazer final solitário. Porque esse sexo é de bocas, saliva, lambidas, toques, olhares, suspiros, pausas, hesitações, risadas, mordidas. Porque esse sexo que só eu sei fazer. Por que esse sexo que só eu sei amar. Que talvez só eu sei me amar. Que talvez eu não esteja mais falando apenas de sexo. Que talvez eu devesse me calar. Porque eu estou sentimental.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

em carne crua

Talvez eu nunca soube como lidar com o amor: o que vem e o que sai. Eu nunca soube manejar o que me dão em sentimentos e me queimo cruelmente. Tenho minhas mãos em carne viva para quem precisar de provas. E dói tanto que deixo cair todo esse sentimento que se espatifa e se derrete pelo chão árido, entre as rachaduras. E depois de tudo feito, tudo quebrado e derretido eu me ajoelho e me desespero na tentativa vã de recolher do chão tudo aquilo que me deram. A terra gruda na minha carne crua.
    Mas há quem faça questão de me afagar as mãos, para me aliviar a dor. Eu digo que não quero ser tão humano assim, mas minha carne crua entrega minha alma fraca de ser a si mesma.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Na boca pendurado...


Há beijos que ainda não te roubei
e me fazem falta,
nunca supridos
pelos muitos tidos.
Entristecem-me mais
que os não sabidos e,
por não saber, não perseguidos.
Alguns assim ficaram
meio pendurados,
na boca ainda, aguardando
hora e vez, sem aceitar
...
De juras secretas
não há lembrança.
Por vezes demoraram
noutras se disfarçaram
em palavras de cordel.
Mas sempre viraram flor.

O que não se fez,
fez-se ao contrário
e, de alguma forma,
então, aconteceu.

E a nossa doida fantasia
não é apenas imaginação,
nem é menos realidade.
Ao contrário, frequentemente,
...
Ela é bem mais verdade...

p.s. para o meu Príncipe do conto "Era uma vez..."
p.p.s. Uma invasão do Beto só pra dizer "Felíz Aniversário"!

Um beijo com gosto de café...

terça-feira, 23 de novembro de 2010

três mais

Ovos mexidos na mesa. Café forte na mesa. Pratos sujos na pia. Travesseiro babado. Sonhos perdidos na cama. Mutantes na vitrola. Livros no chão – espalhados derramando poesias intempestivas. Fotografias velhas no mural. Contas não pagas na estante. Sala sem TV. Sala sem sofá. Janela com cortina aberta ao balanço do vento quase frio. Cacos de vidro espalhados pelo chão.
    Roupas suas e alheias jogadas. Sujas de bebida, fedidas de cigarro. Um corpo na cama, um corpo sobre o corpo. Uma língua percorrendo um pé. Uma mão percorrendo uma coxa. Uma língua ascendendo o corpo, e os dentes mordendo a bunda. Duas bocas se tocando, duas línguas se entrelaçando, uma mão masturbando, uma mão sobre a nuca. Uma boca em um pau, uma mão em um pau, uma boca num pescoço. Uns gemidos soltos. O excesso de desejo.
    Uma boca em dois paus, uma mão em uma bunda, outra mão em um peito, outra mão em uma bunda, dentes no mamilo, uma boca com suspiros.
    Um corpo em baixo, um corpo em cima, um corpo de lado, uma boca no pau, outro pau na vagina, mãos no peito, suor escorrendo pelas costas, amor batendo no coração, desejo inerente na pele.
    E os dentes cravados nos lábios, e as unhas cravadas nas costas e o momento cravando os olhos.
    Um corpo de lado, um corpo na frente, um corpo atrás, um pau na vagina, um pau na bunda, três bocas se beijando, se mordendo. Mãos viajantes, fortes, leves. Intempestivo.
    Gato com fome na cozinha. Café frio na mesa. Sol de meio dia. Dia de meio amor.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

autolove

Hoje as paredes me sufocaram. Tudo me apertou a garganta como de surpresa e faltou-me ar. E eu inventei uma razão para isso: a falta de amor. Falta de um amor físico, que tenha toque e pele. Que me mostre o frio e o calor do sangue.
    Acontece que falta alguém que queira esse coração pouco. Acontece que eu já cansei meus pés de esperar ali na esquina da padaria você passar distraído. Não aconteceu de você.
    Hoje... hoje eu joguei cartas, papéis, bilhetes. Coisas que trazia na carteira, perto de mim: uma velha aliança, umas declarações de amor, e pus tudo numa caixinha preta com bolinhas brancas. Outras eu apenas amassei e joguei no lixo, como se não falassem de sentimentos (talvez) inexistentes agora.
    Hoje eu simplesmente dormirei. E ao acordar serei de uma nova guia: autolove.
    (Que a gente às vezes se esquece de se amar um pouco e se perde pelo desejo de amor de alguéns. Não só pelo amor, às vezes pelo bem-querer, ou só por um pouco de atenção. Que a gente espera que se sinta saudade do nosso papo bom, e que diga que há saudade e que há vontade e que se chame para se conversar, para se olhar, para se rir. Por que às vezes a gente se joga no espaço de outros esperando que no mínimo haja consideração ou retribuição.)
    Hoje, eu precisei de um abraço – e utilizei de meus próprios braços para saciar a sede.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

compartilho

Compartilho meus sorrisos, meus pesares, minha carne, minha ânsia, e os sorvetes tomados quase que nunca, e a cachaça bebida e o cigarro tragado diariamente. Compartilho as músicas escutadas e os filmes e os discos que comprei recentemente e a felicidade de ver pessoas, e o desejo de ter pessoas perto, dentro ou mais perto. Compartilho meu coração e a minha cama, e as paredes do meu infinito. Compartilho os ruídos e os poemas. E quando há dor, eu tento compartilhar, como quando há medo. Eu me compartilho intensamente com quem me faz sorrir e amar, com quem me faz voar.
para Lua, e sua risada contagiante e gostosa.

domingo, 14 de novembro de 2010

dom quixote de la mancha

Peço-lhes, pois, que diga por qual das maluquices que em mim viu me condena e me manda de volta à casa para tomar conta de minha mulher e meus filhos, sem saber se os tenho? Tem alguém o direito de entrar na casa alheia e dar ordem aos seus donos? Pode qualquer um intrometer-se nas leis da cavalaria e julgar os cavaleiros andantes? Será porventura, perder tempo vagar pelo mundo, não para divertir-se, mas para experimentar-lhe as asperezas e assim conquistar a imortalidade? Pouco se me dá que me tenham por louco aqueles que nada sabem da cavalaria, pois cavaleiro sou e cavaleiro hei de morrer.
Miguel de Cervantes
1605

terça-feira, 9 de novembro de 2010

vômito

Ela tinha ânsia. Algo preso na garganta.
    Chegou em casa as três da madrugada depois de um litro de vodka no mesmo bar dos outros dias da semana. Procurou o que comer rapidamente, mas não tinha nada. Gastou todo o dinheiro durante a semana bebendo todos os dias. Sobraram os cigarros. Ela fumou.
    No quintal as nuvens cobriam a lua, e a mangueira resmungava com o barulho do vento. Fazia frio: frio-de-se-aconchegar. Ela se cobriu com o lençol velho dos dois. E tinha um cheiro de mistura de naftalina e sono. Sono que ele havia deixado.
    Tinha saudades.
    Ele havia deixado o all star verde e o reboco da parede que era feito todo fim de ano, junto com a pintura da casa. Era uma briga na escolha das cores: ela sempre quis verde e ele branco. Acabavam pintando de azul. Sempre.
    Ela tomou um antiemético e um relaxante. Com suco de pitanga que comprava simplesmente para irritá-lo.
    A verdade é que a casa todo fazia com que ela o lembrasse.
    E ela deitou na cama, cobriu-se e chamou o sono. Fechou os olhos para aquele teto desbotado. Ouviam-se os sons de bloco de rua, pois era carnaval. E a escuridão dos olhos fechados trouxe-lhe a boca tudo que estava preso na garganta. Ela rapidamente jogou a cabeça pra fora da cama: ela vomitou lágrimas.

domingo, 7 de novembro de 2010

meu delicado

 Sabe meu medo?
    Meu medo é de me perder no enorme mundo das pessoas. No seu enorme mundo. Entrar e me sentir perdido e esquecido e inútil. Entrar e me tornar igual ao outros tantos que habitam seu mundo. Igual aos tantos que olham e te sorriem. É me tornar um classificável qualquer, um visitante qualquer, um qualquer: qualquer.
    Sabe meu medo? É não conseguir te trazer para meu asteróide B-612. Onde tudo cabe na palma da mão, no coração, no bolso ou onde você queira guardar. É não conseguir fazer com que entendas meu sorriso bobo e meus olhos apertados de felicidade que falam mais que minha boca.
    Que a minha felicidade é plena e delicada.
    Porque aqui ninguém nunca viveu realmente. Ainda não sei se é habitável para outros pulmões e corações. Todos estão de passagem, ninguém teve coragem de ficar.
    Eu tenho um medo bobo parecido com suspiro.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

ainda é primavera

Novembro. Ainda é primavera.
É o calor sobrepondo o frio do inverno, anunciando o verão. Dizem que há mais flores. Aprendi que havia mais flores. Era o que ensinavam lá na escola, nas fotos dos livros onde as árvores se faziam multifloridas, onde o verão era a praia, o outono tinha folhas no chão e o inverno tinha chuva e neve.
Ainda é o “primeiro verão”. Nunca ganhei uma flor.
Não quero buquês, caminhões, jardins e exageros. Uma flor apenas seria suficiente e exato. Para esse quarto abafado, para essa vida abafada.
Ainda é primavera, e eu nunca fui amado na primavera. Mas que novembro seja feliz e mágico. 

sábado, 30 de outubro de 2010

quebra-cabeça

Sou quase completo,
ainda que em pedaços,
o que aqui me falta
sobra ali,
onde aqui perco,
mais além encontro.
E sofro duplamente:
que o que sobra,
falta em alguém.
E o que me falta
será de quem?
Roberto Torta
(Beto para os íntimos, Betinho para os momentos de carinho,
Betoso para os momentos melosos, Betão para os momentos de safadeza e
chumbo feliz para mim. “Gosto muito de você leãozinho”)

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

escoa

Amanheci a flor da pele: a pele descascada, descosturada. Entreaberta a porta, escoando. Escoa pelos dedos o tempo, pela goela o desejo, pela virilha o líquido, pelo coração o amor e sua falta e sua presença quase que feita, pelas linhas a impassibilidade e o desconforto de ser pessoal demais, de ser passional demais. Escoam pelos ouvidos algumas melodias, pelas veias a saudade, pela pele o suor da tarde e o frio da noite, pelas calhas a chuva dessa primavera. Pelos pés escoam a estrada acabada que tenta se recomeçar a cada grão de terra batido, pelo ar escoa a fumaça dos carros, pelo pulmão a nicotina e os odores de pessoas.
    Eu abafo. Tento escoar pelas mãos do mundo e me tornar seu, mas o mundo é pouco para mim, como eu sou pouco para ele. 

domingo, 24 de outubro de 2010

esperando e nada mais

E eu pego o telefone na necessidade de ligar para alguém. Era um momento que queria ter uma companhia especial, bem perto. Caço pela agenda os números, mas eu não tenho o seu número, eu não tenho você (ainda). E a agenda se faz cheia de números que deveriam ter sido apagados e eu os apago. No mesmo instante. Por que eu sei que me tornaria fraco e acabaria ligando. E fico pensando em você por mais alguns instantes, pensando em não ter o número de seu telefone para te ligar e você saber que eu pensei em você e talvez assim te fazer pensar em mim.
    (Estou esperando você dizer “vem me ver/quero te ver” e eu (talvez) atordoado, com um constante sorriso bobo e me entupindo de ansiedade, correr até você. E criar possibilidades, imaginar-fantasiar situações, palavras, conversas, olhares e toques, em mesas de bares ou na calçada ou numa cama ou nos copos de vodka. Estou esperando o seu beijo e sentir na sua língua o seu amor e sua intensidade. Estou esperando.)
    Apenas me deixem nesse meu instante de desejo, É dele que eu quero viver agora.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

para me ler

Tento não ser pessoal, nem me entregar de muito nessas linhas, mas é difícil. É duro inventar uma realidade só para agradar. Agradar aos outros e a mim mesmo. Não sou sensacionalista. É assim que sou: de me entregar muito, de me dar muito, (de ganhar pouco), de ser muito-pouco. Resumindo-me a isso aqui, a esse quarto com cheiro de mofo, a essa claridade cegante, a viver na imaginação dos amores quase-que-impossíveis – leia-se quase-que-inqueríveis – a inventar palavras pro meu dessignificado.
    Respiro na velocidade das palavras.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

fingindo essa contradição

Esse sou eu fingindo não querer esse mundo, fingindo estar bem. Essa é a minha máscara de dar-bom-dia. Esse sou eu fingindo gostar que o tempo passe assim devagar. E ficar comendo os dias em porções pequenas.
    Que tenho planos e os imagino quase todos os dias. Finjo que acredito que tudo isso vai acontecer numa velocidade esperada e necessária. Finjo que deixei de amar certas pessoas, que não me encantei por outras que só vi poucas vezes em meio a milhões de outras e músicas e amigos. E que até imaginei uma transa, uma vida, um amor.
    Bebendo pouco, fingindo esquecer os problemas, mas não quem eu sou. Eu finjo saber que eu sou.
    Esse sou eu fingindo, que mesmo sem te conhecer – porque só sei de teu nome e de teu rosto por fotografias – acho que já gosto, até demais que seria capaz de coisas que até duvidaria em meus momentos de loucura maior.
    Acreditem que tudo isso sou eu, mas não acreditem em tudo que sou. Eu sou uma contradição.

domingo, 10 de outubro de 2010

todos os amores

    Quando eu sofro por amor, sofro de todos os amores: os que eu tive, os que não me amaram, os que não me tiveram e não amei, os que me fizeram chorar, os que me magoaram; sofro pela falta de amor. É toda a minha vida de desilusões e descaminhos que eu sinto passar na veia cortando e ferindo novamente. Como se tudo fosse uma dor só e que apenas se esconde quando a gente tá feliz e blábláblá. É uma coisa de “tristeza não tem fim, felicidade sim”. É um alguém agora me fazendo lembrar de você, que me magoou há dois anos atrás, ou de você que não quis me amar. Eu choro-sofro tudo de novo, quase como se fosse agora. Não me critiquem. Não que eu não viva/tenha felicidades, mas apenas não quero falar delas agora. Preciso extirpar esse restinho de dor dessas ultimas semanas. Amanhã eu falo de sol e alegrias e beijos. Deixa isso pra amanhã.
 
para (principalmente) meus três grandes (ex?) amores.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

aviso

Hoje eu não sou de felicidade. Não é tristeza, é apenas um sentimento-de-não-sei-o-que. Algo imensurável, indigente, invasivo, mutável – desde que saibam me tocar.
Aviso por precaução.
Peço a quem tem medo de se frustrar que não me olhe profundamente. Posso ser corrosivo. Sinto pesar os olhos: o mundo cai sobre minhas costas sem que eu o conheça direito.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

ela ele fim

Ela estava em pé, com o rosto inteiro molhado de lágrimas sob aquele mormaço do começo de verão dentro de uma cidade que não era sua. Ele apenas se levantou, pagou o almoço e “seja feliz e passe bem”.
    Ele a chamou para almoçar. Haviam discutido na noite anterior sobre planos e cores de flores. E os lençóis ficaram insuportáveis naquela noite. Ela saiu para o trabalho antes que ele acordasse para não o ver. No meio da aula, ela desconcentrada pelo acontecido da noite anterior, recebeu a ligação dele para um almoço quase cotidiano num restaurante habitual. Era a mesma comida habitual e o mesmo vinho cotidiano. Ela tinha uma felicidade de reconciliação como de sempre. Ele tinha a normalidade de sua vida nos olhos. Na segunda taça de vinho ela estava entregue. Ele apenas disse que ia. O vinho lhe cortou a garganta e sem querer quebrou um pedaço da taça na sua boca.
    Seus olhos fixos nos dele e sua língua fixa no vidro e o sangue misturado ao vinho.
    Ela sentada engoliu o sangue e o choro. A cidade era um pouco sua. Ele apenas se levantou, pagou o almoço e “seja feliz e passe bem”.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

círculo vicioso

Eu te amo agora e daqui a cinco minutos eu te amarei menos e passados oito minutos eu te amarei mais e depois te odiarei e a noite eu serei indiferente ao amor e na madrugada sonharei com uma festa onde danço sob as luzes mais coloridas. Quando acordar, vou amar a cama, e odiarei talvez o despertador. Nem lembrarei que você existe até que meu coração se acelere quando o telefone tocar e ouvir sua voz. E brigaremos e te desejarei a morte com todas as minhas forças, porque você não irá acreditar em mim e me xingará como se você não tivesse piedade e eu não tivesse sentimentos. Chorarei um dia inteiro e no outro me entregarei as baratas e no outro vomitarei e depois me jogarei nos braços de outros alguéns. Mas você dirá que me ama e meu ódio passará lentamente e novamente vou começar a te amar. E novamente vou começar a te odiar, como te amo, como no mesmo instante.

domingo, 19 de setembro de 2010

Pra modelar


O amor é adaptável. Ando aprendendo isso, ou criando isso. A gente vai vivendo e quando senti que ama e/ou é amado pega tudo aquilo de sentimento e amassa-puxa-estica-enrola e vai moldando como massa de modelar. Moldamos perfeitamente para a imperfeição que quase não é esperada. Não é que seja imperfeito, é que não é a perfeição que sempre esperamos. Ao menos que eu espero.
O amor é aceitável assim. E ficamos bem com a imperfeição desse amor. Quase sempre.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Le fabuleux destin

Car rate sa vie un droit inalienable.
"Pois estragar a própria vida é um direto inalienável.”

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Sobre mentira

Na verdade o ser humano como um todo é mentiroso. A mentira é sua invenção cruel e doce. Algo desse tipo. A filha de um sexo anônimo. É do ser humano mentir porque ele é assim, é de seu instinto, de sua alma, do seu carma, o que bem acreditarem. Ele mente para ser feliz ou para sobreviver. E a sobrevivência é na verdade dar vida à sua felicidade. O ser humano mente, enfim, pela sua felicidade. É de nossa carne a mentira, seja ela impregnada ou apenas de suspiro. É de nosso ventre e de nossas unhas ao rasgar o ar após nascermos. Somos assim, moralmente mentirosos – por natureza própria.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Um momento antes de dormir

Há luz no quarto. Muita luz. E a solidão é de costume.
Abafa-se os sons, a música.
Apaga-se a luz e acende-se uma vela. As sombras que se formam são mais reconfortantes e atraentes. É desse coração que se fala.
Ele deitado em sua cama, que confortado por seus sonhos, tanto ensaiou lágrimas e as prendeu. Por medo.
Ele não é forte. Mas que não se subestime a sua dor. Esse é um direito que ele tem: achar que sua dor é a mais aguda e terrível do mundo, por pequenos instantes ou por uma vida toda. É seu direito.
Assim ele deixa as lágrimas tanto ensaiadas correrem pela cama, como crianças brincando. É o seu grito de cansaço. Ele não respira tão bem.
É direito seu fingir ser feliz.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O instante da mulher

A mulher ativa acorda num domingo de ilusão.
Ela pena com seus passos lentos. E a casa é fria.
A mulher calada passeia pelos restos da noite no chão da casa, pelos corpos dormindo jogados.
A mulher nua sente o cheiro do sexo da noite.
A casa se mantém calada, a penumbra.
A casa é amarela. E queima feito sol.
A mulher que se espreguiça. Cansada – ela é cansada da vida de mulher.
A mulher passiva ainda ama. Ama quem não a ama mais.
Alguém acorda e a beija.
Há resto de querer-bem.
A mulher passiva é amada. Cobre-se com os lençóis no sofá e com os sonhos bons da noite. O resto de vodka.
Bebe o resto de vodka.
A mulher amada é quase vazia.
A janela da porta mostra a claridade do dia. A mulher quase vazia vê do terraço o mundo. A mulher quase vazia respira o ar de domingo.
A mulher ativa quer aquele domingo para ela. Ela sorri. E ativa, ela veste-se e sai, porque o mundo, ela sabe: é seu.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

O de todo dia

Hoje eu sou o Zé que para e olha o sol queimar a pele e as retinas, que só pisca quando a nuvem cobre a claridade vinda do céu. O Zé que adentra com medo do futuro incerto, e mesmo que seja certo ainda há um vestígio de medo.
Um Zé que se renovou do ontem na simplicidade de se amanhecer. Como qualquer outro que se renova no que acredita.
Eu sou o Zé que desacredita um pouco em tudo, que veste o mundo. Que tem cores amargadas, que às vezes cheira a vômito, a fome e suor.
Sou o Zé que tem sempre um penar no coração. Sempre um amor no coração. Sempre sangue no coração. Sempre vivo.
E que deita pra dormir pensando em todos os segundos, em todos os ‘porquês’, em todas as conversas do dia.  E só pensa em acordar num dia bem melhor. Que não reza, mas que acredita nos sonhos que faz, mas que quase não sonha – e que não se pense que seja por falta de amor.
Um Zé que sangra quando é machucado e que às vezes tem olhar perdido.
O Zé da construção.
Que constrói seu amor, sua vida, que constrói o mundo onde quer pisar.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Começo de tarde

À tarde que se sopra em tons meio claros, por trás do Ray Ban e das cortinas meio envelhecidas das casas por onde passa. Num caminho firme, dum chão que de cimento vai virando terra, com passos firmes, um olhar perdido nas notas de piano francês que ecoam em seus ouvidos.
O sol está meio ameno.
Só pensa em chegar em casa e trancar-se nas paredes do seu quarto. Livrar-se desse mundo que só quer se desfazer de sua felicidade.
Ele se cala diante do mundo que pode esmagá-lo. Cala-se por que simplesmente não tem mais forças. E espera até estar novamente firme para mostrar o quão forte é.
Ele sorri de uma satisfação de vingança consumada. Como se previsse um futuro incerto.
E antes ele percebe: o amargo da sua língua – é a loucura lhe comendo as vísceras.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Rotina

Meus dias andam os mesmos: os mesmos passos, a mesma cor meio-alegre.
Ando meio sujo de tanto me usar igual dia após dia após, dia após. E isso me cansa de mim. Uma vontade de me deixar em casa, de beber uma vodka pra despertar. Ou dormir até a pele descascar e se renovar.
Sem horas.
Sem minutos.
É a querença de ser novo, de inconstância. Não falo de mudar o jeito de ser ou quem se é, falo de mudar o pouco do ser, um algo, um mínimo.
Ser um pouco novo dia após dia após, dia após.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Carolina

Carolina é nome mágico. Que é um crime reduzi-lo a Carol: cortá-lo ao meio sem pudor. Como certas luzes que não se deixam meio acesas. Como amores que não se come pela metade.
Carolina é simples, é intenso, é íntimo. É pra quem se ama, é pra quando se ama.
Carolina é pele leve.
Carolina é de se agasalhar e confortar e se aquecer.
Carolina é de se ver pela janela em dia de sol.
Carolina é de sorriso, como certos olhares que nos deixam tímido e nos fazem perder o caminho.
Carolina não se reduz. Não é de metade.
Carolina é inteiro.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Ontem

Uma lágrima escorreu na noite. Outra escorreu na cama. E mais sobre o travesseiro. E mais no lençol.
Era noite. Fria.
O coração é cheio de lágrimas antigas, que quase nem se lembra de onde vieram.
E todo esse tempo sem chorar foi mantido num sorriso não falso, mas necessário.
Houve felicidades verdadeiras, completas, mas não se é pra sempre assim.
A noite traz o sono, e ele ameniza a dor.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Minha saudade de agora

Sinto falta de teus braços, de teu perfume. Quero teu beijo e deitar na tua pele.
Não é esse tempo assim frio, essa chuva assim, que me faz querer isso. Tudo isso acentua de leve, pois já era uma necessidade minha.
Uma cama e nós dois, um filme e nós dois. É tudo que preciso.
Preciso chorar em você e você me consolar e você me acalmar e você me amar mais. Sentir assim, teu amor só por mim escorrendo na tua pele.
E só.
Sinto fome de tudo que é você.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Definição

Sou tudo aquilo que é sonho. Tenho olhos de quem voa e asas no coração. Um gosto amargo e insone, e um cheiro de roxo intenso.
Sou de felicidades e tristezas e inseguranças e certezas. Tenho tudo quase por completo, eu me vejo por inteiro, pois vivo inteiro. Tenho medos verdadeiros de coisas que não sei.
Sou inconstante.
E tenho feridas – poucas de guerra, muitas de amor – friáveis e cicatrizadas.
Sou amarelo como dentes, como sol.
Não sou forte.
Eu sou um pouco do que fui e do que serei. Sou agora. Sou um instante.

sábado, 10 de julho de 2010

Os Três-Mal Amados


Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto, mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

Revista do Brasil – 1943
João Cabral de Melo Neto

terça-feira, 6 de julho de 2010

Sobre dizer amor

Não se diz “eu te amo” como quem respira: por que desgasta, corrói, estraga.  Não se diz como palavra fraca, como coisa nenhuma.
Não sinto obrigação de declarar meu amor toda vez que dizem me amar. Ele não é de retribuição. E nessas horas que não se tem bem o que dizer, o silêncio é habitável. Isso não quer dizer que eu não ame. É só que não houve a necessidade de dizer que amo por palavras que penetram o instante. Prefiro o sorriso, prefiro o abraço, e quem não acreditar que isso é amor também, é descrente de mim.
Eu digo que amo com a necessidade de viver, com a precisão de atravessar os olhos, com o querer de coração. E meu coração é constante. Não espere apenas palavras para se sentir amado. Toque-o e sentirá tudo de mim: tudo que me é verdadeiro, completo e forte.
Eu tenho sentimentos inteiros.

sábado, 3 de julho de 2010

Sou apenas

Por acaso percebi que ando mais seco e cru com algumas coisas. Pensei que agora o mundo estaria me desvendando, e assim eu estaria me transformando. Mas não. Se isso acontecesse eu não seria mais nenhum pouco do que ainda sou hoje.
Não me preocuparia com olhares, não teria medo de magoar, não perdoaria tão fácil, nem amaria tão intensamente e simplesmente.
Há uma frase de Clarice: “Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?” E assim me pergunto se esse meu estar seco/cru sou eu crescendo humano. Se sou eu me tornando tão igual como os outros.
E eu que não sei: apenas calo.
E se isso realmente for ser humano, eu não quero. Quero continuar sem entender o mundo e que ele também não me entenda. Pois é o que dá gosto ao dia. É o que me faz ser: apenas.

domingo, 27 de junho de 2010

Pode ser de nós dois

Bom, agora eu quero braços: envolvendo. E os dedos deslizando pelo meu corpo calmo, solto do mundo. Porque eu quero estar solto do mundo. Quero estar pequeno. É que ando tão grande de viver nesses dias.
Despenco no chão de teu corpo, que é quente de vida. E os braços agarram, envolto.
E o meu ouvido em teu peito, me fazendo escutar o coração, que sei, que sim, que bate também por mim. No ritmo dos minutos passando, lento, aperto tua mão e as unhas se encravam na minha pele.
Eu sangro de amor.
Eu quero sangrar de amor. Me corte com a língua, me refugie nos seus dentes, me segure no silêncio. Eu que sou agridoce.
O cheiro exalado é de felicidade. Sente?

quinta-feira, 17 de junho de 2010

De Clarice 1

Sou composta por urgências: minhas alegrias são intensas, minhas tristezas, absolutas. Me entupo de ausências, me esvazio de excessos. Eu não caibo no estreito, eu só vivo nos extremos. Eu caminho, desequilibrada, em cima de uma linha tênue entre a lucidez e a loucura. De ter amigos eu gosto porque preciso de ajuda pra sentir, embora quem se relacione comigo saiba que é por conta-própria e auto-risco. O que tenho de mais obscuro, é o que me ilumina. E a minha lucidez é que é perigosa.

Clarice Lispector
(não há certeza da autoria)

quinta-feira, 10 de junho de 2010

E quando chove...

Em um cômodo quase cinza com uma janela que traduz o estado do mundo, os pingos desenhando seus destinos no vidro.
Dá pra sentir o cheiro da chuva de longe. Aquele cheio de terra molhada. Aquele cheiro de pé enlameado, de sol se escondendo, de vontade de ficar agasalhado. Aquele cheiro de frio.
O mundo parece ficar mais contido, mais necessitado de ser. E as cores densas.
Eu, então, sinto um desejo de me recolher. Ficar assim, com olhos calmos, com tudo que se mais quer – várias coisinhas pequenas que parecem ter mais gosto quando há chuva. Tudo que poderia levar numa mochila ou que me coubesse na mão: tudo que meu coração pensasse instantaneamente.
Acordar as horas que em tempo assim – fechado – parecem mortas. Elas se molham e ficam pesadas de se correr. Ativar o sangue que engrossa e espreguiça. Lento: o coração bombeia. Lento: o coração ama. Não que por ser lento, seja menos. Na chuva meu coração ama lento. E ama mais.

sábado, 29 de maio de 2010

Bilhete

E se eu encostar a mão em teu peito é só vontade de me ligar ao teu coração. Num instante assim. No meio das luzes. Entre as paredes do mundo.
Nos teus olhos eu fixo o que importa.
Quando eu te sorrir com meus dentes amarelos: é que sou tão mais feliz.

para H.

domingo, 23 de maio de 2010

Um pequeno instante

É de sorrir esse instante, seja pelo que levo na mão ou o que levo em coração. E se acender a luz ainda se vê: o instante que eu aperto até quase sufocar nessa ânsia de respirar felicidade.
Eu ligo o ventilador para o ar me chegar melhor.
E o cheiro de café se acaba em mim.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Tomara

Eu respiro bem fundo. Daquelas respirações de olhos fechados onde você se sente protegido do mundo. Mas quase não me entra ar, pois estou cheio. Não me entra comida direito, não me entra amor, não me entra quase nada, pois estou cheio. E preciso primeiro esvaziar para que algo novo, ou mesmo antigo, caiba em mim.
O que tenho aqui é um choro de tão antes. Cada coisa me acumulava um punhado de lágrimas. Coisas às vezes tão antigas que não me lembro mais o que foram. Não sei bem porque retenho tanto choro. Apenas sei que passei por várias coisas aonde o choro me veio na ponta da língua e sem razão eu o engoli.
Tem horas que penso que não agüentarei e vou cair no meio da rua em prantos. E que quando me perguntarem o porquê, direi: “estou apenas me deixando esvaziar, me derretendo nesse asfalto”. Não, isso não seria ruim. Porque aí eu estaria tão vazio de tristezas que poderia respirar tão mais e sentir o mundo tão (tão) mais. Levantaria talvez mais forte do que agora, talvez mais feliz do que agora, talvez mais eu do que agora.
E o que eu mais quero é ser apenas eu.

domingo, 9 de maio de 2010

Necessidade

Ultimamente meus pés estão tão no chão. Estou tão ligado ao que é real. Tudo está dentro de mim e preciso soltar o que me sufoca, o que me quer explodir: uma necessidade de sonhar.
Estou desfantasiado e eu não sou assim. Quem entende meus olhos sabe do que eu sou: do que não existe, de fantasias, ilusões. Porque é difícil sentir o mundo tão diretamente (logo eu que tenho a pele tão transparente).
Ando pelas ruas sempre atento porque toda essa realidade me dá medo, mas a minha vontade é apenas de seguir com os olhos fechados me guiando pelos sons que me são penetráveis. Com os olhos fechados fingir que apenas sou eu. É que assim eu mais imagino. Eu mais imagino o que realmente quero ser, o que mais quero ter ou o que mais quero ver.
E no meio da rua entre olhares ameaçadores e inabitáveis o céu parece ser mais seguro, porque parece ser infinito. Tem a suavidade e a força certa. E estar nesse céu é estar infinito como ele.
Então paro no tudo e me torno leve, verdadeiramente. Mesmo. E o ar que me entra tão fortemente, me sai tão fortemente e nesse dançar se faz vento. Por assim é só esperar esse vento me alçar vôo – apesar do chão querer me prender. É só esperar por um começo de irrealidade.
O vento me cria asas.
Eu preciso voar.

sábado, 27 de março de 2010

Um domingo para sempre – 2

Além disso, Mathilde é uma otimista. Tem para si que, se aquele fio não a levar ao seu amante, paciência, não importa, ela ainda pode se enforcar com ele.
Um Domingo para Sempre - 1991
Sébastien Japrisot

quarta-feira, 17 de março de 2010

Um domingo para sempre - 1

Tinha medo da guerra e da morte, como quase todo mundo, mas medo também do vento, anunciador dos gases, medo de um sinalizador rasgando a noite, medo de si mesmo, que era impulsivo no medo e não conseguia se controlar, medo do canhão dos seus, medo de seu próprio fuzil, medo do barulho dos torpedos, medo da mina que explode e engole todo um destacamento, medo do abrigo inundado que afoga, da terra que sepulta, do melro perdido que faz passar uma súbita sombra diante dos olhos, medo dos sonhos em que sempre se acaba estripado no fundo de um buraco, medo do sargento que está louco para explodir os seus miolos porque não agüenta mais de tanto gritar com você, medo dos ratos que o esperam e, como aperitivo, vêm farejá-lo enquanto você dorme, medo de piolho, de chato e de recordações que chupam o seu sangue, medo de tudo.

Um Domingo para Sempre - 1991
Sébastien Japrisot

quinta-feira, 4 de março de 2010

Três quase quatro


Eram umas três e meia. No meio da madrugada eu acordei. Não me lembro de ter sonhado e por isso não sei se acordei de sonho. Eu me acordei! Sei que senti sede. E tinha que beber água naquele instante – acho que não dormiria de novo se não matasse a sede. Acendi a lâmpada do quarto e fui até a cozinha. Bebi e voltei.
E ao entrar no meu quarto vi na parede atrás da cama uma barata. Perto do teto: uma barata. Não sei se foi a luz acesa que a despertou ou se ela aproveitou o escuro para andar pelo mundo. Mas algo em mim dizia que o escuro lhe convida a andar, porque no escuro ela estaria protegida.
E vendo-a ali, se aproveitando do escuro, eu imagino: que também se aproveita de meu sono para andar por tudo o que é meu; e me pergunto: que planos terá ela nesse escuro enquanto durmo? Quem sabe que planos terá ela nesse escuro. Sei agora que ela anda por tudo que é meu. Tudo que está ali pode ter sido tocado por ela. Tudo ali pode estar impregnado dela. E isso me dói: saber que tudo que é meu pode ter sido tocado por mãos (patas!) estranhas a mim. Estranhas de mim. Logo enquanto durmo. Logo quando julgo estar protegido.
Ela então desceu até a prateleira pendurada na parede e foi andando entre os objetos como se procurasse por algo. Parecia desconfiada. E vendo-a andar por ali não consigo parar de imaginar por onde mais ela pode ter andado no escuro do meu quarto. Talvez ande por mim, e me percorrendo descubra meus segredos, minhas cicatrizes. Talvez ela me investigue. Talvez ela veja os meus sonhos ou roube qualquer insignificância minha. É. Talvez.
Ou talvez ela me beije, talvez ela apenas me ame. E aproveita o escuro para esse amor. Não sei bem. Sei que tudo pode ser nesse escuro.   
E não ter a certeza do que ela faz nesse escuro é o que me dá medo. Não, não tenho medo de baratas. Tenho nojo. Não sei necessariamente porque, mas tenho nojo. O medo que falo é do desconhecido. E de estar tão vulnerável. (Eu que me julgava protegido!).
Com a necessidade de proteger meus segredos do mundo, de impedir que aquela barata possa talvez contá-los, eu me armo com uma sandália, decidido. Decidido a matá-la. Decidido a me proteger. Tenho eu essa coragem.
Tenho eu coragem de proteger o que é meu intimamente.
E com um golpe com toda a força que reuni naquele instante tentei matá-la. Mas ela fugiu tão rapidamente, se escondendo entre os vinis. Ela havia me descoberto. E havia medo nela agora. Eu não sentia, mas sabia. E esperei até que ela saísse do seu esconderijo. Quieto, esperei, pois o silêncio dessa hora me mantinha assim. Foi quando ela decidiu sair se esgueirando. Avancei sobre ela. Acho que por susto ela caiu na minha cama. Correu e jogou-se no chão e se escondeu no cantinho entre a parede e a cama. Eu a via, mas não a ataquei. Ela sabia que era vista, mas fingia estar invisível.
Subi na cama para observá-la do alto. Queria ficar – estar – superior a ela. E com susto foi que vi que ela não estava mais ali. Aproveitou o meu descuido e fugiu. Na tentativa de ser superior, fui inútil em proteger qualquer segredo meu de qualquer plano que aquela barata teria.
Como poderia dormir assim agora? Sabendo estar desprotegido, sabendo que podem saber de mim (meus segredos)? Ela bem que poderia estar apenas esperando que eu dormisse e daí então... então... então! Então: não faço ideia. Apenas meu medo era maior. Como poderia dormir assim? Quase quatro horas e o sono me fazia cansado e meus olhos insistiam em procurar a barata. E meu corpo se mantinha imóvel.
Foi que o sono apertou. E me forçou.
Fui deitando. Desliguei a luz com receio, pois tudo ficaria escuro de novo. E de novo ela se refugiaria em tudo, tudo seria seu. E com desconfiança cravada nos dentes fechei os olhos. E o sono me chegou mais: dormi.
Descobri no outro dia que a barata foi encontrada morta na sala. Sem ninguém ter lhe matado: estava morta. Sei que existem milhões de baratas pelo mundo, mas prefiro acreditar que era ela – a mesma barata da noite anterior – era ela que estava morta.
Pois bem, acredito em duas possibilidades de sua morte. Acredito que ela morreu porque descobri o seu segredo. Descobri que ela me observava no refúgio do escuro. E nada que é vivo pode existir sem um segredo que seja só seu. E o segredo dela eu havia descoberto. Havia lhe tirado a vida. E se ela realmente descobriu algum segredo meu: não sei, sei apenas que ainda vivo. Talvez ela tenha descoberto o segredo errado – tenho vários. Talvez ela não tenha descoberto o segredo que simplesmente me tira a vida.
Ou talvez ela tenha morrido por me amar mesmo. E vendo que eu não a amava, não tinha porque mais viver. Não que meu amor seja tão essencial assim. É que meu não-amar é ácido e amargo.
E imaginar que ela morreu por ter sido descoberta é o melhor destino. Me dói menos.