sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

entreaberta

Na noite seca: perfurou-lhe o peito qual faca amolada retalhando-o como de gente que não é completa.
    Ela cheirava a morango de seu perfume barato e andava descalça. Os sapatos nas mãos, resultado de pés cansados de manter-se alta aos olhos e amores dos outros. Um calor imensurável lhe fazia suar.
    A noite anterior lhe deixou marcas: as costas brancas arranhadas, as coxas, o pescoço marcado pela ânsia descontrolada de uma boca. A noite anterior lhe trouxe marcas: seu coração ferido estava certo de amor.
    Certeza indecisa a de quem nem dormiu. Enquanto o café fervia, olhava a janela e as horas eram quase cinco. O sol nascia inquieto incomodando-a – como dor – por ser ela gente da noite. Ela que amava a escuridão quebrada pelas luzes dos postes formando sombras duvidosas e incertas. Chegou em casa depois de cruzar meia cidade a pé, depois de ser consumida dolorosamente, depois dos copos de vodka, depois de sonhar com felicidade.
    Quando saiu de casa em corpo de menina, Helena tinha a pele ainda mais branca. Parecia pura de qualquer sentimento – doloroso ou viciante. Mas seu coração – que não está a olhos nus – seu coração nunca foi puro. Mas sempre foi fortaleza inatingível para quem a queria íntima. Nunca deixou que a conhecessem como nem ela se conhecia.
    Helena de cabelos ruivos e olhos esguios, que mãos eram decididas. Helena que nunca havia amado – nem nunca houve sequer vestígio disso – sabia decididamente que agora estava amando. Ela sabia mais do que sempre queria.
    Em sua mão, o número do telefone de quem a amou violentamente no banheiro do bar esperava em rabisco num papel amarelo. O mundo parecia pulsar.
    Amarelos eram também seus dentes.
    Nos olhos que fitavam as janelas dos prédios se abrindo, abrigava-se uma indecisão de mulher. Helena que as mãos eram trêmulas.
    Quando a sua mão largou o papel do segundo andar, o cheiro de café fervendo quebrou o silêncio da casa. Helena caminhou leve deslizando pelo corredor até o quarto. Quem de certo ama perceberia nos seus pés o peso da vida. A porta do quarto entreaberta e o abajur ainda aceso, e o homem que lhe amava nu entre o lençol branco.
    A cidade acordava como se acorda por espanto.

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