Ecoou o tiro
pela casa. A cidade em festa de padroeira cobria-se em fogos de artifício naquele
instante. Ninguém além dela pode ouvir o barulho da arma disparando, e do grito
que ela mesma deu assustada. Sua mão trêmula tapava a própria boca numa
tentativa de silenciar o grito forte. A arma descarregada caiu no chão. Felipe,
sobre a cama, ainda gemia enquanto seu sangue vermelho-encardido melava o
lençol branco de algodão. Ela aproximou-se hesitante da cama e os olhos dele
quase fechados a encaravam.
- Eu não te amo,
mais – disse ela: pálida.
Os sinos da
igreja badalavam anunciando a missa. Ela lavou as mãos e o rosto na tentativa
de tirar a morte de sua pele, como se quisesse rasgar-se e em carne-viva não
ser mais a mesma. Encarou-se no espelho talvez nem se reconhecendo. Do
guarda-roupa retirou tudo que parecia mais importante: algumas roupas, uns
livros de Florbela, um perfume, um pouco dinheiro que tinha, os cigarros que
restavam. Tudo jogado dentro de uma mala azul quase rasgada.
Seus olhos
aflitos caíram sobre o corpo do homem, agora, sem vida. O corpo sobre a cama dos
dois.
Saiu.
Naquela noite as
ruas nem pareciam as mesmas: cheias de gente à caminho da igreja com suas velas
acesas dentro de garrafas de plástico. E toda a festa na praça em frente à
igreja e as barracas de comidas e o parque de diversão. O barulho de fogos, de
crianças felizes, de conversas felizes, do forró que saía do alto-falante.
>Ela, ainda
atordoada, caminhava em passos largos entre as pessoas. O vento da noite lambia
sua pele exposta pelo vestido curto cor-de-café. Chegou à rua principal e toda
ela estava iluminada, com lâmpadas amarradas penduradas como bandeirinhas de
São João, e as imagens de papelão da padroeira no alto dos postes. De vez em
quando ainda se via fogos de artifício iluminando o céu pouco estrelado –
podia-se até contar as estrelas.
Seu olhar
perdido procurava por toda a rua uma saída. E ela só queria fugir. Deixar o
feito, o sentido, o acabado, deixar para trás tudo naquela cidade. Como se pudesse
esquecer. Como seu coração estava acelerado e dolorido.
E então, em um
céu enegrecido, seus olhos acharam aquela gigante roda gigante iluminada para
atingir as nuvens. Tantos vermelhos e amarelos e azuis em sincronia, em
pisca-pisca, em claridade. No céu. O céu que parecia ser saída – única saída.
Seus pés em
passos acelerados foram. Ela empurrava em desespero as pessoas que cruzavam seu
caminho – reto percurso. Aos pés da roda gigante, seus olhos ergueram-se até o
topo: o céu – parecia tão infinito. A mala foi deixada aberta para trás.
A roda gigante
começou a girar. Ela subiu. Suas mãos em força agarravam a trava de segurança,
não em medo, mas por – apenas – intensidade. Enquanto subia, ela sorria como se
estivesse livre do mundo, como se nada mais pudesse lhe impedir. A cidade
pequena parecia ainda menor lá de cima. As luzes, as casas. Quanto mais próximo
do topo ela chegava mais a cidade parecia longe. Mas o céu, o céu não parecia
mais perto. As poucas estrelas ainda brilhavam lá distantes: inalcançáveis.
Quando a roda
gigante parou, ela estava bem no alto. Bem mais alto. Apoiou-se e ficou em pé
no banco que balanceava. Desesperadamente ela queria o céu. Por que ele era em
escuridão como o que era agora. Aquela culpa que lhe remoia do não-amor que se
findou no corpo inerte e sem vida sobre a cama. Queria fugir daquela morte
impregnada na pele. Qual sangue lhe manchou.
Soltou uma das
mãos. A outra se soltou por si.
E seu corpo caiu
ao chão. Um tiro ecoou em sua mente.
E a cidade silenciou.
*conto selecionado para a antologia "ANE 50 Anos - Contos"
Gostei do blog, parabéns!
ResponderExcluirbeijo