Toda noite é
uma meia-luz. Até você chegar. Sempre alta madrugada e você vem com o sorriso
mais feliz, chapada, cheirando a um perfume que não é o seu – que nem é o meu
–, batom retocado e os mesmos olhos de flor. Deixa a bolsa no sofá, requenta o
café que fiz para o jantar, acende o último cigarro – sempre o último e abre a
cortina da cozinha. Hoje a vista é lua cheia cortada pelos edifícios
adormecidos. A vitrola, ainda com o disco da Clara que você sempre coloca
enquanto se arruma, agora ganha o francês nos tons de Piaf. Sempre o fim de
tudo. E sai cantarolando baixinho desfilando entre os móveis em direção a mim.
Eu sempre
finjo dormir, mas nunca consigo pregar o olho sabendo que você não está aqui. E
é por isso que minhas olheiras que tanto te seduzem são tão evidentes. Você vem
se esgueirando por debaixo do cobertor, sussurrando no meu ouvido, leve como se
fosse dia., só para me acordar. Disfarço a preocupação e a raiva e abro meus
olhos nos teus. Me beija no canto da boca e já começa a despejar suas teorias
noturnas e detalhes de tudo onde não houve eu.
Tento me fazer
escutar, mas só queira te agarrar pelos braços e te fazer ficar. Porque eu
estou. Meu café é sempre forte por tua causa e até tenho o disco daquela banda
que você adora, novinho em folha, esperando você ficar e desvirginar ele.
Porque a casa é sempre tão vazia e, mesmo agora comigo acarinhando teu braço,
você ainda não está aqui nem pela metade.
Chega a hora
em que até você se cansa de falar, é quando já não há mais o disco rodando e
você começa a se despir. Como nossa primeira vez há dois anos: ainda é uma
descoberta do teu corpo. E você sabe se desenhar na meia escuridão que o abajur
faz. È quando você é realmente minha. Não apenas pelo físico, por estar dentro
de você, mas porque eu sei que agora você se entrega e finalmente diz o meu
nome. E no final diz que me ama como nunca outro alguém.
Então você se
ausenta em algum instante e eu solto foguetes dentro de mim porque sempre
imagino que algo depois de tudo dito ecoou dentro de você. Mas no fim abro os
olhos: tua ausência é ainda o cotidiano. Ainda danço sozinho no espaço que
criei. Passos desconjuntados, sem ritmo e fortes. É tudo o que eu tenho dentro
e fora de mim. Por isso me abstenho de abrir a porta e ir embora: mesmo que eu
queira viver sob as estrelas, ainda sou pequeno para ser só sem teu abrigo.
Desligo o abajur e me encolho para caber em qualquer sonho que restou na
escuridão.