quarta-feira, 18 de setembro de 2013

sob a noite (noturno)

Toda noite é uma meia-luz. Até você chegar. Sempre alta madrugada e você vem com o sorriso mais feliz, chapada, cheirando a um perfume que não é o seu – que nem é o meu –, batom retocado e os mesmos olhos de flor. Deixa a bolsa no sofá, requenta o café que fiz para o jantar, acende o último cigarro – sempre o último e abre a cortina da cozinha. Hoje a vista é lua cheia cortada pelos edifícios adormecidos. A vitrola, ainda com o disco da Clara que você sempre coloca enquanto se arruma, agora ganha o francês nos tons de Piaf. Sempre o fim de tudo. E sai cantarolando baixinho desfilando entre os móveis em direção a mim.
Eu sempre finjo dormir, mas nunca consigo pregar o olho sabendo que você não está aqui. E é por isso que minhas olheiras que tanto te seduzem são tão evidentes. Você vem se esgueirando por debaixo do cobertor, sussurrando no meu ouvido, leve como se fosse dia., só para me acordar. Disfarço a preocupação e a raiva e abro meus olhos nos teus. Me beija no canto da boca e já começa a despejar suas teorias noturnas e detalhes de tudo onde não houve eu.
Tento me fazer escutar, mas só queira te agarrar pelos braços e te fazer ficar. Porque eu estou. Meu café é sempre forte por tua causa e até tenho o disco daquela banda que você adora, novinho em folha, esperando você ficar e desvirginar ele. Porque a casa é sempre tão vazia e, mesmo agora comigo acarinhando teu braço, você ainda não está aqui nem pela metade.
Chega a hora em que até você se cansa de falar, é quando já não há mais o disco rodando e você começa a se despir. Como nossa primeira vez há dois anos: ainda é uma descoberta do teu corpo. E você sabe se desenhar na meia escuridão que o abajur faz. È quando você é realmente minha. Não apenas pelo físico, por estar dentro de você, mas porque eu sei que agora você se entrega e finalmente diz o meu nome. E no final diz que me ama como nunca outro alguém.
Então você se ausenta em algum instante e eu solto foguetes dentro de mim porque sempre imagino que algo depois de tudo dito ecoou dentro de você. Mas no fim abro os olhos: tua ausência é ainda o cotidiano. Ainda danço sozinho no espaço que criei. Passos desconjuntados, sem ritmo e fortes. É tudo o que eu tenho dentro e fora de mim. Por isso me abstenho de abrir a porta e ir embora: mesmo que eu queira viver sob as estrelas, ainda sou pequeno para ser só sem teu abrigo.
Desligo o abajur e me encolho para caber em qualquer sonho que restou na escuridão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

vírgula