Além disso, Mathilde é uma otimista. Tem para si que, se aquele fio não a levar ao seu amante, paciência, não importa, ela ainda pode se enforcar com ele.
Tinha medo da guerra e da morte, como quase todo mundo, mas medo também do vento, anunciador dos gases, medo de um sinalizador rasgando a noite, medo de si mesmo, que era impulsivo no medo e não conseguia se controlar, medo do canhão dos seus, medo de seu próprio fuzil, medo do barulho dos torpedos, medo da mina que explode e engole todo um destacamento, medo do abrigo inundado que afoga, da terra que sepulta, do melro perdido que faz passar uma súbita sombra diante dos olhos, medo dos sonhos em que sempre se acaba estripado no fundo de um buraco, medo do sargento que está louco para explodir os seus miolos porque não agüenta mais de tanto gritar com você, medo dos ratos que o esperam e, como aperitivo, vêm farejá-lo enquanto você dorme, medo de piolho, de chato e de recordações que chupam o seu sangue, medo de tudo.
Eram umas três e
meia. No meio da madrugada eu acordei. Não me lembro de ter sonhado e por isso
não sei se acordei de sonho. Eu me acordei! Sei que senti sede. E tinha que
beber água naquele instante – acho que não dormiria de novo se não matasse a
sede. Acendi a lâmpada do quarto e fui até a cozinha. Bebi e voltei.
E ao entrar no
meu quarto vi na parede atrás da cama uma barata. Perto do teto: uma barata.
Não sei se foi a luz acesa que a despertou ou se ela aproveitou o escuro para
andar pelo mundo. Mas algo em mim dizia que o escuro lhe convida a andar,
porque no escuro ela estaria protegida.
E vendo-a ali,
se aproveitando do escuro, eu imagino: que também se aproveita de meu sono para
andar por tudo o que é meu; e me pergunto: que planos terá ela nesse escuro
enquanto durmo? Quem sabe que planos terá ela nesse escuro. Sei agora que ela
anda por tudo que é meu. Tudo que está ali pode ter sido tocado por ela. Tudo
ali pode estar impregnado dela. E isso me dói: saber que tudo que é meu pode
ter sido tocado por mãos (patas!) estranhas a mim. Estranhas de mim. Logo
enquanto durmo. Logo quando julgo estar protegido.
Ela então desceu
até a prateleira pendurada na parede e foi andando entre os objetos como se
procurasse por algo. Parecia desconfiada. E vendo-a andar por ali não consigo
parar de imaginar por onde mais ela pode ter andado no escuro do meu quarto.
Talvez ande por mim, e me percorrendo descubra meus segredos, minhas cicatrizes.
Talvez ela me investigue. Talvez ela veja os meus sonhos ou roube qualquer
insignificância minha. É. Talvez.
Ou talvez ela me
beije, talvez ela apenas me ame. E aproveita o escuro para esse amor. Não sei
bem. Sei que tudo pode ser nesse escuro.
E não ter a
certeza do que ela faz nesse escuro é o que me dá medo. Não, não tenho medo de
baratas. Tenho nojo. Não sei necessariamente porque, mas tenho nojo. O medo que
falo é do desconhecido. E de estar tão vulnerável. (Eu que me julgava
protegido!).
Com a
necessidade de proteger meus segredos do mundo, de impedir que aquela barata possa
talvez contá-los, eu me armo com uma sandália, decidido. Decidido a matá-la. Decidido
a me proteger. Tenho eu essa coragem.
Tenho eu coragem
de proteger o que é meu intimamente.
E com um golpe
com toda a força que reuni naquele instante tentei matá-la. Mas ela fugiu tão
rapidamente, se escondendo entre os vinis. Ela havia me descoberto. E havia
medo nela agora. Eu não sentia, mas sabia. E esperei até que ela saísse do seu
esconderijo. Quieto, esperei, pois o silêncio dessa hora me mantinha assim. Foi
quando ela decidiu sair se esgueirando. Avancei sobre ela. Acho que por susto
ela caiu na minha cama. Correu e jogou-se no chão e se escondeu no cantinho
entre a parede e a cama. Eu a via, mas não a ataquei. Ela sabia que era vista,
mas fingia estar invisível.
Subi na cama
para observá-la do alto. Queria ficar – estar – superior a ela. E com susto foi
que vi que ela não estava mais ali. Aproveitou o meu descuido e fugiu. Na
tentativa de ser superior, fui inútil em proteger qualquer segredo meu de
qualquer plano que aquela barata teria.
Como poderia
dormir assim agora? Sabendo estar desprotegido, sabendo que podem saber de mim
(meus segredos)? Ela bem que poderia estar apenas esperando que eu dormisse e
daí então... então... então! Então: não faço ideia. Apenas meu medo era maior.
Como poderia dormir assim? Quase quatro horas e o sono me fazia cansado e meus
olhos insistiam em procurar a barata. E meu corpo se mantinha imóvel.
Foi que o sono
apertou. E me forçou.
Fui deitando. Desliguei
a luz com receio, pois tudo ficaria escuro de novo. E de novo ela se refugiaria
em tudo, tudo seria seu. E com desconfiança cravada nos dentes fechei os olhos.
E o sono me chegou mais: dormi.
Descobri no
outro dia que a barata foi encontrada morta na sala. Sem ninguém ter lhe
matado: estava morta. Sei que existem milhões de baratas pelo mundo, mas
prefiro acreditar que era ela – a mesma barata da noite anterior – era ela que
estava morta.
Pois bem,
acredito em duas possibilidades de sua morte. Acredito que ela morreu porque
descobri o seu segredo. Descobri que ela me observava no refúgio do escuro. E
nada que é vivo pode existir sem um segredo que seja só seu. E o segredo dela
eu havia descoberto. Havia lhe tirado a vida. E se ela realmente descobriu
algum segredo meu: não sei, sei apenas que ainda vivo. Talvez ela tenha
descoberto o segredo errado – tenho vários. Talvez ela não tenha descoberto o
segredo que simplesmente me tira a vida.
Ou talvez ela
tenha morrido por me amar mesmo. E vendo que eu não a amava, não tinha porque
mais viver. Não que meu amor seja tão essencial assim. É que meu não-amar é
ácido e amargo.
E imaginar que
ela morreu por ter sido descoberta é o melhor destino. Me dói menos.